CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

29

Editorial Franciscana BRAGA – 2006

 

 

Ficha Técnica

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Coordenador:

Fr. José António Correia Pereira, ofm

Editorial Franciscana Apt. 1217

4711-856 BRAGA

Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735

E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org

Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org

Capa:

Desenho de Fr. José Morais, ofm

Edição:

Editorial Franciscana

Propriedade:

Província Portuguesa da Ordem Franciscana

Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1

Caderno 29 – 2006

Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

  

I Estudos

  1. Isidro P. Lamelas OFM
  • ―Espírito de Assis – 20 anos de um caminho a percorrer
  1. David de Azevedo OFM
  • Jesus Cristo em S. Francisco
  1. Dario Antiseri
  • Filosofia contemporânea, reconquista da contingência e actualidade do pensamento franciscano
  1. Felice Acrocca
  • Regra dos Frades Menores – Forma de vida em tensão entre Memória e Profecia.
  1. Henrique Pinto Rema
  • A Senhora da Conceição na Consolidação da Independência de Portugal

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“ESPÍRITO DE ASSIS”

 20 anos de um caminho a percorrer

por Fr. Isidro P. Lamelas OFM

 

   No dia 27 de outubro de 1986, por ocasião da Jornada Mundial de Oração pela Paz, reuniram-se em Assis, pela primeira vez na história e a convite do Papa João Paulo II, os representantes das diversas igrejas, comunidades cristãs e grandes religiões do mundo para, juntos, jejuarem e rezarem pela paz. Celebramos agora, portanto, 20 anos desse grande evento que se transformou num ícone de paz e de esperança para a humanidade.

Os sinais dos tempos e o sinal de um lugar

 As três grandes Jornadas Mundiais de Oração pela Paz que o Papa João Paulo II, durante o seu pontificado, convocou para Assis (em 1986, 1993, 2002) nasceram não só duma leitura atenta dos sinais dos tempos como são um bom exemplo em como também há sinais de lugares. Assim, Assis, porque já era um desses lugares, passou-o a ser ainda mais.

Nos anos 80 do século passado, a humanidade vivia tempos atribulados.  Em várias partes do mundo, surgiam focos de guerra. O muro de Berlim ainda estava em pé teimando em dividir dois blocos contrapostos que mantinham entre si um clima de ― guerra fria. Neste contexto, a ONU proclamou 1986 Ano Internacional da paz.

João Paulo II, sempre atento aos sinais dos tempos, aproveita a ocasião para, na Basílica de S. Paulo, em Roma, aquando da conclusão da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (25 janeiro), tornou pública a iniciativa de uma Jornada de Oração pela paz em Assis. Para este ―encontro especial de ora- ção pela paz, na cidade de Assis seriam convocadas as autoridades das Igrejas e Comunidades cristãs e representantes das religiões de todo o mundo. Na mesma altura o Papa recordava uma coincidência não de todo ocasional: neste mesmo dia do ano de 1959, e no mesmo lugar o Papa João XXIII anunciara a intenção de convocar o Concílio Vaticano II. Na mesma circunstância o papa recordava que ― nenhum cristão, ou mesmo nenhum ser humano que acredite em Deus Criador do mundo e Senhor da história, pode permanecer indiferente perante um problema que toca intimamente o presente e o futuro da humanidade 1.

Em janeiro de 1993, quando a Europa sofria os horrores da guerra dos Balcãs, o bispo de Roma sentiu mais uma vez que era oportuno voltar a Assis para, com todas as religiões, rezar pela paz. Em 24 de Janeiro de 2002, poucos meses depois do trágico atentado de 11 de setembro, o Papa convidou, mais uma vez, os representantes de todas Igrejas, Comunidades e Religiões, para outra jornada de oração pela paz, mantendo assim bem vivo o sonho da paz e a profecia de Assis.

Não é de pouca importância esta associação intencional entre o Concílio Vaticano II e o novo Espírito que irá soprar na Igreja e o ― espírito de Assis. Quando, pouco tempo depois do trágico atentado de 11 de setembro, em 24 de janeiro de 2002 o Papa João Paulo II voltou a Assis para mais uma grande jornada inter-religiosa de oração e jejum pela paz, Sua Santidade escolheu o mesmo meio de transporte, o comboio, que seu predecessor João XXIII usara em 4 de outubro de 1962, quando peregrinou a Assis para rezar pelo bom êxito do Concílio que se iniciaria dentro de poucos dias. Tal iniciativa era entendido, nas palavras do então Cardeal Ratzinger, como um símbolo de grande esperança e da peregrinação que a Igreja estava a percorrer na história presente:

Quando, no dia 24 de janeiro, sob um céu grávido de chuva, partiu o comboio que devia conduzir a Assis os representantes de um grande número de igrejas cristãs e comunidades eclesiais, juntamente com os representantes de muitas religiões mundiais, para testemunhar e rezar pela paz, este comboio pareceu-me como que um símbolo da nossa peregrinação na história. Não somos, na verdade, todos passageiros de um mesmo comboio? O facto que o comboio tenha escolhido como seu destino a paz e a justiça, a reconciliação dos povos e das religiões, não é com certeza uma grande ambição, e ao mesmo tempo, um sinal de esperança? ”2. E aquele que sucederia a João Paulo II, continua: “O Evento de Assis… foi sobretudo a expressão de um caminho, de uma busca, da peregrinação pela paz que só acontece se unida à justiça. De facto, onde falta a justiça, onde aos indivíduos são negados os direitos, a ausência de guerra pode ser apenas um véu detrás do qual se escondem a injustiça e a opressão 3.

Duas décadas passadas, o ― espírito de Assis continua a ser um vento profético não só actual como vital para o futuro da humanidade e das religiões.

Porquê a ti, Assis?

― Enquanto temos tempo (hás kairòn ékomen) façamos o bem, é o apelo de Paulo (Gl 6,10). Assis, a cidade dos santos inseparáveis Francisco e Clara, é um dos lugares raros no mundo onde quem chega parece que tem ― todo o tempo do mundo e uma vontade imensa de ―fazer o bem.

Aludindo à ― Jornada de oração pela paz em Assis que se aproximava o Bispo de Roma anunciava: ―há um lugar no mundo onde todos se podem encontrar: Assis 4. Depois do encontro de 27 de outubro de 1986 o Papa confidenciava a alguns dos presentes: tinham sido sugeridas outras cidades para um tão importante evento. Mas todas tinham algum inconveniente por motivos vários. Quando foi nomeado Assis, todas os obstáculos caíram por terra.

Assis é, de facto, esse lugar raro no mundo onde todos se podem encontrar para reiniciar um caminho de aproximação entre os homens no mesmo caminho da paz: ―viemos a Assis de  várias partes do mundo, significando o caminho comum que a humanidade é chamada a percorrer 5.

Pouco antes de morrer, Francisco pediu aos seus frades que o pusessem em terra, voltado para Assis, e proferiu estas palavras de bênção: ―Bendita por Deus sejas tu, cidade santa, porque por ti se salvarão muitas almas e em ti habitarão muitos servos de Deus e muitos dos teus filhos serão escolhidos para o reino da vida eterna.

Estas palavras que Francisco, já moribundo, proferiu ao despedir-se da sua cidade parecem palpitar ainda hoje nas ruas de Assis.

A escolha de Assis para um encontro tão singular não foi, portanto, por acaso. A pequena cidade umbra surge aos olhos do mundo como a cidadela da Paz: um lugar de encontro de gentes de todas as proveniências, culturas e religiões; um espaço favorável a atmosferas de diálogo e uma via privilegiada para promover a reconciliação entre os povos.

A figura humilde, alegre e pacífica do Irmão de Assis e a sensibilidade feminina e mística de Clara inspiram só por si o encontro e o diálogo profundo que dispensa, muitas vezes, as palavras. Pela sua espiritualidade primaveril, pelo seu sentido de fraternidade universal, pela sua busca constante da paz e reconciliação, pela sua recusa absoluta da violência e capacidade de ir ao encontro do

―outro sem armas nem prepotência, os santos de Assis deram uma lição de humanismo e cidadania que continua actualíssima.

Francisco de Assis é, de facto, visto por todos como o ― irmão universal. Há poucos anos foi considerado ―o homem do milénio. João Paulo II definiu-o o ― homem da fronteira (Discurso aos bispos italianos em Assis, 12 de março de 1982). Tudo isto porque Francisco continua a falar aos homens de hoje e a interpelar nossos contemporâneos, independentes da sua confissão religiosa ou ade- são ideológica. Parece que cada um de nós vê no Pobrezinho de Assis algo de próprio ou do que desejaria ser. E, no fundo, há um Francisco em cada um de nós que se esforça por ir mais longe e fazer algo de melhor.

O fascínio com que Francisco atrai a si crentes e não crentes é enorme: Constatá-mo-lo todos também naquele inesquecível encontro de oração em Assis, em 27 de Outubro de 1986. Entre as inumeráveis vias que a Misericórdia divina abre diante dos homens que buscam a verdade, o caminho percorrido por S. Francisco é talvez o mais rico em sugestões: certo é que ainda hoje S. Francisco exerce sobre muitas almas a atracção de uma experiência original e transformante 6.

Um dom precioso

 Francisco de Assis, ― homem católico e apostólico, mostra-nos, mais com o exemplo do que com palavras, que é possível anunciar o Evangelho sem ofender, que se pode dialogar construtivamente, que se pode chegar à paz com uma simples melodia entoada por um coração puro e desarmado.

Tudo isto porque o santo de Assis foi um intérprete genuíno da Mensagem de Cristo. Ele foi o santo que soube conciliar, num equilíbrio surpreendente, a adesão literal e radical ao Evangelho e a Cristo com uma capacidade espiritual desmedida de abertura ao outro, ao diferente, sobretudo ao que está ― à margem ou mais longe. Ele é um Cristão radical, na medida em que assume plenamente a sua identidade cristã, seguindo o Evangelho à letra. Ele está longe, porém, de ser um fundamentalista. Leva a sério cada palavra da Escritura, mas para viver em espírito evangélico, não movido pelo escrúpulo ou integralismo fanáticos. Francisco ensina-nos, assim, que não temos que renunciar à nossa identidade ou convicções para podermos dialogar. Antes, é essa sua coerente e fundamentada identidade que potencia o diálogo. Foi a sua experiência cristã forte que dotou Francisco de uma capacidade imensa de derrubar muros, ultrapassar fronteiras para se encontrar com pessoas diferentes e envolvê-las em processos de reconciliação. O fundamentalismo agressivo nasce, de facto, da própria insegurança ou do medo que o encontro com o outro diferente ponha em risco a própria convicção e situação.

A proposta franciscana não tem, por outro lado, nada a ver com um irenismo poético que alguns movimentos pacifistas hodiernos não hesitam em aproveitar. Na visão de Francisco, a paz é um dom gratuito do Alto que só será acolhido pelos corações puros e reconciliados, dispostos a ― compreender antes de ser compreendido, a amar antes de ser amado, a perdoar antes de ser perdoado.

O caminho da paz passa, na verdade, pela via do homem autêntico, originário. E esse homem chama-se ― irmão. Francisco por ser autenticamente homem e totalmente reconciliado consigo e com todas as criaturas, considera-se e é visto como o irmão ― menor de todos. Cada homem é para ele um irmão e uma presença real do Deus sumamente bom no mundo. Ele é o homem totalmente livre e confiante que acredita na bondade natural de todos os homens e criaturas. E é daí que lhe vem essa capacidade de diálogo com as religiões e todos os homens e criaturas. E é assim que ele nos mostra o caminho da paz.

O Senhor te dê a sua paz! No seu Testamento Francisco apresenta esta saudação como tendo-lhe sido revelada pelo próprio Deus: ―O senhor me revelou que dissesse esta saudação. Ele assume-se, deste modo, como um porta-voz e mensageiro da ― Paz de Deus. Por isso começava todas as suas pregações com as mesmas palavras que, pelo que dizem os biógrafos, soavam como novas ao auditório 7: ― O senhor vos dê a sua paz! 8. Francisco faz questão que este anúncio e partilha da paz seja uma das marcas distintivas da sua fraternitas.

Mas o Santo de Assis não foi apenas um pregador da paz. Foi também instrumento de pacificação em activo em situações bem críticas: recorde-se a sua atitude de perdão para com os ladrões de Monte Casale; a sua mediação na reconciliação entre o bispo de Assis e a autoridade civil, o seu encontro pacífico com o Sultão Melek el Kamel do Egipto em tempo de Cruzadas, a reconciliação com todas as criaturas (recorde-se o episódio simbólico do lobo de Gúbio, ou o Cântico das criaturas).

Num período em que o maniqueísmo cátaro insistia em ver nas criaturas materiais algo de mau e adverso ao espírito, Francisco superou o velho maniqueísmo e o ancestral dualismo sagrado-profano, para louvar o Criador em todas as suas criaturas.

Não obstante o seu tempo ser de apelo à cruzada, o Pobre de Assis foi o primeiro a delinear um programa revolucionário de abordagem ao mundo muçulmano, segundo o espírito do Evangelho. Foi o primeiro fundador a dedicar um capítulo da sua Regra (cap. 16) à evangelização do Islão, onde expõe o método missionário que os seus frades devem observar: ―os irmãos que vão para entre os infiéis (muçulmanos) devem comportar-se no meio deles do seguinte modo: não litiguem nem disputem mas sujeitem-se a toda a criatura humana por amor de Deus e confessem ser cristãos.

Nas palavras de Bento XVI, ―S. Francisco, que respondeu plenamente ao apelo de Cristo crucificado, emana ainda hoje o esplendor de uma paz que convenceu o Sultão e pode abater realmente os muros. Se nós, como cristãos, per- corrermos o caminho para a paz seguindo o exemplo de S. Francisco, não temos que ter medo de perder a nossa identidade, pois é precisamente então que a encontraremos. E se outros se unem a nós na busca da paz e da justiça nem nós nem eles temos que temer que a verdade venha a ser diminuída por frases feitas.

De modo algum. Se nos orientamos verdadeiramente para a paz, então estamos no caminho certo, porque estamos no caminho do Deus da paz 9.

Graças à singular simplicidade e cortesia deste homem pobre, paciente, e apaixonado por Deus e suas criaturas, a pacata cidadezinha de Assis que serviu de berço à sua aventura, transformou-se numa reserva de paz e fraternidade uni- versal capaz de reunir e tocar os corações de todos os homens de boa vontade. Sobretudo a partir de 1800, ganha releve uma leitura mais social de Francisco e da experiência franciscana. Não é por acaso que, na passagem do XVIII para o XIX século, surge em Assis o ― Comité internacional para a paz universal.

Durante os tempos penosos da Primeira Guerra mundial, surge essa oração anónima ―Preghiera semplice, a mais bela e divulgada oração da paz atribuída ao santo de Assis.

Um acontecimento profético

Naquela manhã do dia 27 de outubro de 1986, quando o Santo Padre dava as boas-vindas aos representantes de todas as famílias religiosas reunidos na Porciúncula (Basílica de Santa Maria dos Anjos), surgiu no céu de Assis um esplêndido e auspicioso Arco-Íris, no qual todos viram um sinal de esperança e de paz.

Papa João Paulo II, homem de gestos proféticos como o Poverello de quem era profundo admirador (visitou Assis, enquanto papa, 6 vezes), ao convocar os chefes de todas as famílias religiosas para rezarem pela paz, não tinha em mente uma espécie de parlamento das religiões que se juntavam para negociar entre si a paz, ou para constituírem uma força de influência perante as potências do mundo. Cristãos, Judeus, Muçulmanos, Budistas e outros encontram-se em Assis para rezar pela paz. E não de um modo sincretista ou proselitista, mas a partir da intimidade com o mesmo Deus e da proximidade com os irmãos diferentes. Em cada um desses encontros não esteve em causa a procura de um mínimo denominador comum, ou um consenso religioso entre os presentes. Não se tratou sequer de um encontro de oração inter-religiosa, uma vez que todos rezaram no mesmo lugar, mas não rezaram ―juntos nem fizeram uma oração comum.

Reunir-se em Assis para rezar pela paz visava pôr em evidência sobretudo

que existe uma outra dimensão da paz e um outro modo de a promover, que não resulta de negociações, de compromissos políticos ou de negociações eco- nómicas, mas é o resultado da oração, que, apesar da diversidade das religiões, exprime uma relação com um poder supremo que ultrapassa as nossas simples capacidades humanas 10.

Os representantes das diversas confissões rezaram num mesmo lugar, segundo a modalidade própria de cada um. Mesmo quando reunidos no mesmo lugar, na Praça da Basílica de S. Francisco, cada um proferiu a sua prece pedindo a Deus o dom da paz e fê-lo por sua conta, distanciando-se inclusive fisicamente dos outros. Não se reuniram para uma oração comum, uma vez que a oração se baseia numa crença religiosa com noções teológicas (sobre Deus, a quem se reza). Na medida em que aqueles que rezam diferem nas tais crenças religiosas não podem orar em comum, mas podem juntar-se para orar, cada uma ao seu modo, ao mesmo e único Deus e por uma mesma causa.

Dentro deste respeito recíproco, abrem-se mil possibilidades de pacifica- mente testemunhar as respectivas crenças e de trabalhar solidariamente pelo bem da humanidade. Esta é, aliás, uma das melhores e mais actuais lições de Assis: Respeitando as diferenças doutrinais que separam as diversas crenças, a oração pode unir os corações e os crentes na busca da justiça e da paz, refutando toda a tentação de utilizar a religião como arma de guerra.

Nas palavras do Papa João Paulo II, o que aconteceu em Assis, não foi um encontro de ―sincretismo religioso, mas uma atitude sincera de oração a Deus, no respeito recíproco. E foi por isso – continua o santo Padre – que se escolheu para o encontro de Assis a fórmula: reunir-se juntos para rezar”11.

 Significado do “espírito de Assis”: caminhar juntos fazendo-nos próximos

 Assis passou, desde então, a ser a memória e o símbolo mais forte de um caminho novo a percorrer que passa pelo diálogo respeitoso entre as religiões como via de pacificação dos povos: ―O facto de termos vindo a Assis, dizia então o Papa João Paulo II, provenientes de tão diversas regiões do mundo é já um sinal deste caminho comum que a humanidade está chamada a percorrer”.

A metáfora do ―caminho adequa-se bem à condição da humanidade ― peregrina do ser e eterna emigrante (Ortega y Gasset). O homem é um mendicante do sentido que só encontrará cruzando-se com outros percursos que o confrontam com o sentido do seu caminho. E é destes encontros e confrontos com outros percursos e caminhantes que ele colherá frutos para encontrar o rumo que procura enquanto membro da única família humana12. Tais ― confrontos, se se transformarem em verdadeiros encontros, suscitarão progressivamente a necessidade de caminhar juntos, percorrendo o mesmo caminho e perseguindo o mesmo objectivo. Este é, sem dúvida, a via mais segura para a paz.

Num discurso aos peregrinos proferido em 15 de março de 1994, João Paulo II retomava a metáfora do ― caminho como categoria adequada ao ― Espírito de Assis: ―Desejo encorajar todos os que vieram a Assis no seu caminho. Este mundo precisa que os homens e mulheres sensíveis aos valores religiosos ajudem os outros a encontrar o gosto e a vontade de caminhar juntos. Este é o „espírito de Assis‟ 13.

De facto, o ― espírito de Assis funda suas raízes na capacidade que Francisco, qual protótipo de todo o homem autêntico fiel à sua natureza e vocação, mostrou ser capacidade de todo o ser humano de independente da cultura ou religião, ir ao encontro e deixar-se cruzar com outros percursos numa rota comum que leve e um porto sempre melhor.

Na verdade, a paz só acontecerá quando a tudo se antepuser ao encontro com o homem, respeitando a sua cultura e tradições, promovendo a justiça também entre os mais pequenos, dando a todos a possibilidade de exprimirem e relacionarem com liberdade, garantido os direitos fundamentais de todos os indivíduos enquanto membros de uma mesma família humana. Por isso, também as religiões, porque feitas de homens, não se devem poupar na promoção de condições de uma vida minimamente digna para todos os homens e mulheres. ―A paz – disse então João Paulo II na Praça de S. Francisco – pode construir-se se tivermos a coragem e a força para respeitar, proteger e promover a vida humana, desde o seio materno até à morte, para bem dos indivíduos e dos povos, mas especialmente dos fracos, dos pobres e sem direitos. Há pois que superar o egoísmo, a ambição e o espírito de vingança.

Contra os que anunciam um futuro de ― guerras religiosas e conflitos entre as civilizações, João Paulo II e o actual Papa Bento XVI continuam, inspirados e animados por Francisco, a acreditar que as religiões podem e devem ser fonte de perdão e de paz. Muitos de nós ainda guardamos na memória auditiva os apelos do Papa em Assis:

― Mai più violenza!

Nunca mais a violência!

Nunca mais a guerra!

Nunca mais o terrorismo!

Em nome de Deus cada religião deve trazer

à terra a justiça e paz, perdão e vida”.

 Este clima e atitude de diálogo e encontro inspirado em S. Francisco e sus- citado pelo Papa João Paulo II foi chamado pelo próprio Papa ―espírito de Assis. Designa-se com a expressão todos os esforços e iniciativas que visam alimentar esse ― espírito e mentalidade de aproximação cortês, amigável e respeitadora entre os diferentes mundos e sensibilidades religiosas, pondo em relevo que a paz é um dom de Deus que está no cerne das grandes religiões.

Tal ― espírito corresponde ao intuito primeiro que presidiu às grandes Jornadas de Oração pela paz em Assis, com os quais se ―pretendia exprimir o desejo de educar para a paz através da divulgação de uma espiritualidade e de uma cultura de paz 14.

Porque a expressão ―espírito de Assis se tem prestado a múltiplas interpretações e apropriações, convirá dizer algo sobre o significado desta na intenção do Papa João Paulo II e de S. Francisco. Não falta quem, em nome de Francisco e do ―espírito de Assis proponha uma aproximação dos credos ou um pacifismo de sentido único mais romântico que historicamente viável.

Não se inclui nestas tendências a Comunidade de S. Egídio a qual, a partir da primeira Jornada Mundial de 1986, tem levado por diante numerosas iniciativas inspiradas no evento profético de Assis 15. Andrea Ricardi tem toda a razão quando afirma que o ―espírito de Assis é herdeiro de muitas iniciativas pioneiras que precederam o Vaticano II. Não diz, porém, tudo quando define o ― espírito de Assis como a ― reunião de todas as religiões, apresentando a Igreja Católica como servidora do diálogo e pondo em relevo a força frágil das religiões 16.

Para entendermos o verdadeiro significado do ― espírito de Assis, o melhor é mesmo retomar o pensamento do Papa que renovou a profecia da paz a partir da inspiração de Francisco. Que todos os esforços de aproximação e diálogo com as outras religiões se inserem na linha continuidade com a sensibilidade do Concílio é ponto assumido pelo mesmo Pontífice que, poucos dias antes do encontro de 1986 (em 22 outubro) expunha o sentido profundo desse evento que deveria ser ―visto e interpretado à luz do Concílio Vaticano II e seus ensinamentos 17.

Por outro lado, já antes do encontro de 27 de outubro em Assis, o papa considerava Assis como um ―lugar que a seráfica figura de Francisco transformara num centro de fraternidade universal 18. No próprio dia do encontro de outubro de 1986 afirmou que Assis, graças a Francisco e Clara, é capaz de dar aos homens uma ―lição permanente 19.

Em que consiste tal lição? O próprio pastor da Igreja respondeu naquele dia: ―movidos pelo exemplo de S. Francisco e S. Clara, verdadeiros discípulos de Cristo, e convictos pela experiência deste dia que vivemos juntos, nós compromete-mo-nos a examinar as nossas consciências, a escutar mais fielmente a sua voz, a purificar os nossos espíritos de preconceitos, do ódio, da inimizade, do ciúme e da inveja. Procuraremos ser operadores de paz no pensamento e na acção, com a mente e com o coração centrados na humanidade da família humana. E convidamos todos os nossos irmãos e irmãs que nos escutam para que façam o mesmo 20.

Segundo a intenção do S. Padre, o ― espírito de Assis implica, em primeiro lugar, uma proposta dirigida a todos os homens e mulheres no sentido de conscientes dos limites que afectam toda a humana condição, purificar as mentes e o coração de todo o tipo de preconceitos, ódio, inimizade ou ciúme, a viver na fraternidade e solidariedade, sendo operadores de paz em palavras e acção. Para sublinhar a sinceridade desta atitude e o elevado apreço pela paz, o Papa asso- ciou o jejum à oração.

Depois desse já distante primeiro encontro de 1986, na promoção do qual teve um papel fundamental o cardeal Roger Etchegaray, presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, muitos outros encontros congéneres se realizaram por todo o mundo ao longo destes anos: em Mornington (28 de janeiro de 1989), no Japão, todos os anos, desde 1987, se reza pela paz no Monte Hiei, na mesma data em que se celebra Hiroshima. A Comunidade de S. Egídio tem contribuído, através do seu departamento ―Homens e Religiões, e inspirando-se na Jornada Mundial de Assis -1986, de modo particular para manter vivo o ― espírito de Assis. Desde essa data, todos os anos reúne os representantes das religiões mundiais para rezar e reflectir nos passos a dar pelo bem precioso da paz.

Um mês depois do encontro de Assis de 24 de janeiro de 2002, João Paulo II enviou a todos os chefes de estado e governantes do mundo uma carta na qual apresentava o Decálogo de Assis para a paz, na qual reiterava a necessidade da família humana escolher o amor em vez do ódio.

Também os Franciscanos, como discípulos do ― espírito de Assis e mensageiros da Paz e do Bem que Francisco anunciou com palavras e gestos, aderiram com entusiasmo a esta brisa de paz que sopra a partir de Assis, reavivada pelo gesto profético do dia 27 de outubro de 1986 e os encontros similares que se lhe seguiram. Em Assis e em todo o mundo têm promovido encontros de oração e reflexão de cariz inter-religioso dentro da lógica de Assis. Os Ministros Gerais das Famílias Franciscanas, por ocasião do X aniversário do primeiro encontro de oração pela paz em Assis, sugeriram algumas orientações para a paz e a evangelização, enumerando as notas descritivas do ― espírito de Assis 21:

― espírito de Assis, assim como o Espírito de Deus do qual deriva, não pode circunscrever-se dentro de qualquer fronteira (cf. Jo 3,8) e, por isso, deve ajudar a derrubar os muros que separam os homens e os povos;

―espírito de Assis caracteriza-se, por isso, por uma atitude ecuménica que convida todos os povos, gentes, raças e culturas, todos os povos e homens da terra a reconhecer que todos os bens provêm do Altíssimo e sumo Bem (Rnb 23,7);

  • Assim como Francisco de Assis se esforçou constantemente por anunciar e ser um instrumento de paz, também os que se movem no mesmo ― espírito de Assis devem buscar apaixonadamente a paz;
  • A oração sincera e confiante é outra das notas do ― espírito de Assis: oração de súplica, mas também de reconhecimento pela paz que nos vem de
  • Este espírito de oração visa promover uma espiritualidade e cultura da paz, a qual será fruto, em grande parte, de uma sensibilidade crescente para com as ― sementes do Verbo palpitantes nas outras religiões e culturas através das quais o Espírito também pode actuar 22.

Também no nosso país tem havido alguns ecos desse ― espírito de oração e paz. Este ano em que celebramos o vigésimo aniversário da primeira Jornada Mundial de Assis, os diferentes ramos da Família Franciscana Portuguesa promovem, no dia 27 de outubro (em Braga, Lisboa, Fátima e Coimbra), encontros de oração e reflexão nas diversas partes do País em que estão presentes.

É verdade que os frutos de Assis não são tão abundantes ou promissores como desejaríamos. É necessário muito menos gente e vontade para fazer a guerra do que para fazer a paz. Por isso, apesar das muitas boas vontades e dos esforços das maiorias, a guerra, o terrorismo, as injustiças continuam na ordem do dia. Porém, como todas as plantas delicadas, também a paz deve ser cultivada e cuidada em todo o tempo e lugar e não deixará de dar fruto a seu tempo. Necessitamos, por isso, de gestos simbólicos e interpelantes como o de Assis e de homens e mulheres proféticos como Francisco e Clara.

Redigido em Assis, setembro de 2006

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Notas

1 Homilia in Basilica Hostiensi, 25/01/1986.

2 In P. MESSA, Giovanni Paolo II e lo “Spirito di Assisi”, Assis 2006, 20.

3 Ibid. 21.

4 In C. BUCCIARELLI, Lo Spirito di Assisi per un‟Europa in dialogo con i popoli, in AA. VV., Lo spirito di Assisi, Roma 2003, 169.

5 JOÃO PAULO II, Allocutio ocasione oblata sollennis precationis pro pace, 27/10/1986.

6 JOÃO PAULO II, Allocutio ad capitulares Ordinis Fratrum Minorum Conventualium coram admissos, 27/5/1989. In C. BONIZZI, L‟Icona di Assisi nel magistero di Giovanni Paolo II, 234.

7 Cf. Espelho de perfeição.

8 TOMÁS DE CELANO, Primeira vida, 23.

9 P. MESSA, Giovanni Paolo II e lo “Spirito di Assisi”, Assis 2006, 23.

10 JOÃO PAULO II, Discurso aos Representantes reunidos em Assis para a Jornada Mundial de Oração pela Paz, 27/10/1986.

11 JOÃO PAULO II, Audiência geral, 22/10/1986.

12 Dentro do espírito do que assumira o Vaticano II quando diz, por exemplo, que ― os vários povos constituem uma só comunidade. Ele têm uma mesma origem já que Deus fez habitar o mesmo género humano em toda a face da terra, Nostra Aetate, 1.

13 V. COLI, Lo spirito di Assisi: Caminare insieme esercitando la prossimità, in AA. VV.

Lo spirito di Assisi, Roma 2003, 218.

14 JOÃO PAULO II, Messsaggio per la celebrazione della Giornata Mondiale della Pace.

Pacem in terris (1/1/2003) 9.

15 Em Roma (1978 e 1988), Varsóvia (1989), Bari (1990), Malta (1991), Bruxelas (1992),

Milão (1993), Assis (1994), Florença (1995), Roma (1996), Pádua (1997), Bucareste (1998).

16 G. IAMMARRONE, “Lo spirito di Assisi” alla luce della visione catolica del dialogo tra

le religioni e della testimonianza storica di San Francesco, in AA. VV., Lo Spirito di Assisi, Roma 2003, 92.

17 JOÃO PAULO II, Audiência Geral, 22/10/1986.

18 JOÃO PAULO II, Audiência a uma peregrinação calabrês a Assis, 2/10/1986. In C. BONIZZI, L‟Icona di Assisi nel magistero di Giovanni Paolo II, 105.

19 JOÃO PAULO II, Allocutio ocasione oblata sollennis precationis pro pace, 27/10/1986.

In C. BONIZZI, L‟Icona di Assisi nel magistero di Giovanni Paolo II, 134.

20 Ibid. 135.

21 Epistola „Diei Orationis pro Pace‟.

22  No parágrafo 65 da encíclica Dominum Vivificantem, João Paulo segundo escrevera: ―em qualquer lado onde se reze no mundo, aí está o Espírito Santo, sopro vital da oração .

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JESUS CRISTO EM S. FRANCISCO

 por Fr. David de Azevedo OFM

 

 O documento “Declaração sobre a Vocação da Ordem nos Dias de hoje”, produzido pelo Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores celebrado em Madrid em 1973, declara logo no início: ― No centro da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus no encontro pessoal com Jesus Cristo.  É o que atestam os escritos de Francisco e outros textos. Sob qualquer aspecto que se aborde – oração, fraternidade, pobreza, presença no meio dos homens – todo o projecto evangélico nos remete continuamente para a fé. (n. 5). A palavra principal é: ―encontro pessoal.

Verdadeiramente a Pessoa de Jesus é a fonte, o centro e o segredo da vida de S. Francisco; e deveria ser também o coração de toda a experiência franciscana, Francisco não teve em vista qualquer problema de apostolado: combater os albigenses ou restaurar a santidade do Povo cristão. Nem tão pouco um problema espiritual: promover a sua santificação pessoal ou definir e estruturar um perfil de santidade. Tudo brotou espontaneamente de uma paixão de amor por Jesus. Foi uma vivência totalmente centralizada na Pessoa de Jesus. Uma relação de amor. Não uma relação de interesse, fosse este em favor da Igreja em geral, fosse em favor do aperfeiçoamento pessoal seu ou dos outros. Esta postura, indispensavelmente de relação pessoal tem depois reflexos práticos na sua vida e impulsos revolucionários quer no que se refere à vida dos indivíduos, quer no que se refere ao conjunto da humanidade como tal. É decisivo, porém, tanto para a renovação da Ordem, como para a formação dos novos franciscanos, ter consciência do ponto de partida que se toma: se o funcional – ver a Ordem em função da Igreja -; se o relacional – ver o franciscanismo como relação de amor. Ter consciência de que a grande prioridade é a relação de amor. Também para a felicidade dos homens.

Vamos limitar-nos aos Escritos de S. Francisco, embora abertos a alguns testemunhos dos seus biógrafos. Demorar-nos-emos, primeiro, a contemplar a paixão amorosa de Francisco por Jesus; depois, os mistérios de Jesus mais vivi- dos por Francisco; e, finalmente, esboçaremos alguns traços do perfil de Jesus.

A Paixão Amorosa de Francisco por Jesus

 Depois dos primeiros passos da sua conversão, é a Pessoa de Jesus que surge imediatamente diante do olhar infantil e extasiado de Francisco. A Pessoa de Jesus em primeiro plano: grande, linda, luminosa, encantadora, avassaladora. Tudo o mais se esbate e perde na sombra. Fica só ela. Os problemas sociais e religiosos do mundo de então, os pecados e as preocupações da Igreja, as inter- rogações da inteligência e as opiniões dos teólogos, os problemas pessoais dele, sonhos de grandeza e tribulações do espírito – os seus problemas interiores sobretudo – tudo isso passa para segundo plano ou fica como que perdido no vazio da memória que de repetente se forma. São Boaventura, referindo uma aparição do Crucificado anterior à que aconteceu na capelinha de S. Damião, parece acentuar este aspecto puramente pessoal do encontro de Francisco com Cristo. Não há ali a preocupação da igreja que ameaça ruína, como na visão de

  1. Damião, mas tão-só a presença de Jesus. (FV p. 21). Tomás de Celano, igualmente, captou bem este segredo da experiência de Francisco: ―Toda a sua alma tinha sede de Cristo. A Cristo votava, não apenas o coração mas todo o corpo (2 C94). E na Vida Primeira: ―Os irmãos que com ele viveram sabem como a toda a hora lhe aflorava aos lábios a recordação de Jesus e com que enlevo e ternura sobre ele discorria (…) Que intimidades as suas com Jesus! Trazia Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus presente em todos os seus membros! (1 C 115).

Mas voltemos a S. Francisco. A sua paixão transparece primeiro na própria maneira de falar, nos nomes que dá a Jesus e na emoção que lhes acrescenta ser- vindo-se de adjectivos de encanto. O nome mais frequente é ― Nosso  Senhor Jesus Cristo”, que aparece pelo menos quarenta e cinco vezes, com frequência aquecido  com  o  adjectivo  “santíssimo”.  Em contexto eucarístico: ― Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo” (8 vezes); e noutros: ― Mãe do nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo” (OP, antífona); ou “altíssimo”: “quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo (UVC).

Outro nome muito frequente é o de “Filho de Deus” (Umas 25 vezes). Também este enriquecido com adjectivos ardentes. “Teu dilecto Filho” (PPN 6; OP 7, 3; 15, 3; Ex 5, 1); ―Teu amado Filho” (PPN 7; OP 9, 2; SVM 2; 1 R 23,

5; T 40) Teu filho muito amado” (1 R 23, 6).; ―Teu santíssimo e dilecto Filho” OP antífona); ―seu Filho bendido e glorioso”(2 CF 11); “Cristo, Filho de Deus vivo” (CO 26; 1 R 9, 4); “Deus e filho de Deus”(CO 27) “verdadeiro Filho de Deus”(Ex 8); “Altíssimo Filho de Deus”(T 10); “Teu único Filho”(1 R 23, 1). E outros semelhantes.

A emoção, porém, tem mais força e mais ternura quando se lê o texto seguido. Só dois. Na Segunda Carta aos Fiéis, ao referir-se à Anunciação, conta:

―O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia nascer do céu a tomar carne verdadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas. E sendo Ele mais rico do que tudo quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza  (2 CF 4-5). E na primeira versão da mesma carta, referindo-se a Jesus: ― Oh! como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! como é santo ter um tal esposo, consolador, belo e admirável! Oh! como é santo e amável ter um tal irmão e um tal filho, agradável, humilde, pacífico, doce e mais que tudo desejável, Nosso Senhor Jesus Cristo, que deu a vida pelas suas ovelhas (1 CF 11-13).

Outra forma eloquente e singela desta paixão de Francisco por Jesus era espontaneidade com que tudo lhe acordava na mente a lembrança do seu Senhor:

― Ao ver as flores, diz Tomás de Celano, imediatamente se reportava à contem- plação dessa outra flor primaveril, radiosamente nascida do tronco de Jessé (1 C 81); (…) uma ovelhinha num rebanho de cabras fazia-lhe lembrar Jesus entre os fariseus (1 C 77); um vermezinho rastejando pelo chão trazia-lhe ao pensamento Aquele de quem o profeta disse ― Eu sou um verme e não um homem (1 C 80); as pedras do caminho recordavam-lhe Jesus que foi a ― pedra angular; o fogo evocava no seu espírito Aquele que de si disse: ― Eu sou a luz do mundo ; e assim praticamente a propósito de todas as criaturas.

Mistérios de Jesus mais presentes na alma de Francisco

 Se em algum campo Francisco viveu a pobreza – a pobreza como gratuidade – foi na contemplação de Jesus. Francisco não se preocupa de si. Só vive o encanto e a gratidão de ser amado. Só vive o seu fascínio por Jesus. Devido à obsessão do pecado, a espiritualidade cristã está muito inclinada para o homem: salvação eterna, conversão moral, caminhada na perfeição… Francisco parece esquecer-se de si. Contempla Jesus. Mesmo na Paixão, não são os problemas humanos que dominam Francisco mas aquilo que Jesus viveu nesses momentos. Os mistérios mais presentes são a Encarnação, a Eucaristia e a Paixão.

Uma das originalidades de Francisco é a aproximação dos dois primeiros: a Eucaristia e a Encarnação. Não como faz S. Paulo, que relaciona a Eucaristia mais com a Paixão. Além do que contam as Legendas sobre o Natal, a Encarnação está muito presente nos Escritos de Francisco: na 2 Cf 4-18, na 2 Cf 23-29; e OP 7. 11.15.

O aspecto que mais encanta S. Francisco é a infinita descida de Deus. Tanto na Encarnação como na Eucaristia. A motivação não é primeiramente o pecado, mas a aproximação de Deus ao homem. o desejo de estar com o homem. Na Exortação 1ª: ― Por isso, ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de coração duro. Porque não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se humilha cada dia, como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no seio da Virgem; cada dia vem até nós em aparências de humildade; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos do sacerdote (Ex 1ª 14-18). E com maior emoção na Carta a toda a Ordem. Depois de uma exortação aos irmãos sacerdotes, exclama: ― Que o homem todo se espante, que o mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está Cristo o Filho de Deus vivo! Oh! grandeza admirável!, oh! condescendência assombrosa, oh! humildade sublime, oh! sublimidade humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação, nas aparências de um bocado de pão. Vede, irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que ele vos exalte. Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, para que totalmente vos possua aquele que totalmente a vós se dá (CO 26-29). Note-se a alusão implícita ao amor esponsal. O fundo do pensamento não é o pecado, mas o amor de esposo de Deus connosco. Na Segunda Carta aos Fiéis há referência mais clara à remissão do pecado, mas a presença da Eucaristia ouve-se como uma melodia de fundo aberta pela palavra:

― sobre eles repoisará o espírito do Senhor e neles fará morada e mansão” (2 CF 48-56). O mesmo pensamento na 1 R 22, 25-27.

A Paixão é contemplada principalmente no chamado Ofício da Paixão, mas também aí o que aconteceu a Jesus faz esquecer o lado humano. Francisco como que se faz possuir pela Pessoa de Jesus e é Este quem entra em diálogo com o Pai celeste. Neste diálogo é também muito significativo que Jesus pouco se lamente dos sofrimentos físicos e quase só se lamente dos sofrimentos do coração: a ingratidão e perfídia dos inimigos, ― E me tornaram o mal em paga do bem e o ódio em paga do amor (1, 3.4); ― Armaram-me laços aos pés e encurvaram-me a alma (3, 6); ― Calcam-me aos pés os meus inimigos e espezinham-me todo o dia (4, 1. 2); o abandono dos amigos: ― Meus amigos e vizinhos já vinham para mim, mas pararam; e os meus parentes detiveram-se ao longe (1, 7); ―Procurei quem de mim tivesse compaixão, mas não achei (2,8), ―Mais que os meus inimigos, tornei-me objecto de muito opróbrio para os meus vizinhos (4,8), ―Tornei-me como que um estranho para os meus irmãos, como um estrangeiro para os filhos de minha mãe (5,8); a humilhação: ― Tu conheces a minha humilhação e confusão e a minha ignomínia (2,6), ― O meu coração fez-se como cera a derreter-se no meu peito (6,7). Com muitas lamentações semelhantes, Jesus, pela boca de Francisco, vai apresentando seus sofrimentos ao Pai. O sofrimento físico também aparece, mas de relance e sintetizado numa ou outra palavra: ― golpes de azorrague (5,10); ― tenho os ossos desconjuntados (6,6); ― agravaram as dores das minhas chagas (6, 10).

A par do queixume, abundam outros sentimentos positivos, em expressão bela e emocionada: a prece ao Pai para que venha em seu favor; a confiança no poder e amor do Pai; o louvor ao Pai pela sua intervenção e vitória sobre os inimigos, etc. Assim em alguns salmos, principalmente a partir do salmo 7, que nos fazem captar fulgores de ressurreição: ― Gentes todas aplaudi batendo palmas… Porque o Santíssimo Pai do céu, nosso Rei desde toda a eternidade, resolveu enviar lá do alto a seu dilecto Filho e Ele operou a salvação no meio da terra (7, 3.); ― Cantar-Te-ei, Senhor, Pai santíssimo, Rei do céu e da terra, por me teres consolado. Tu és o meu Deus e salvador (14 1-2).

O mistério da Salvação aparece noutros muitos escritos – CO 3, CO 46; Ex. 6ª; 1 R 22, 2; 1 R 23, 3 – as mais das vezes como simples referência; mas, com um simples adjectivo, Francisco envolve o mistério de ternura e adoração.  Só um texto. Na 2 Cf, depois de falar da Encarnação e da instituição da Eucaristia, entra na Paixão do Senhor com a oração no Jardim das Oliveiras, no fim da qual recorda: ― Ora a vontade do Pai foi esta: Que seu Filho bendito e glorioso, que Ele nos havia dado e que por nós nascera, se oferecesse, por seu próprio sangue, como sacrifício e hóstia no altar da cruz; não por si mesmo, por quem todas as coisas foram feitas, mas pelos nossos pecados, deixando-nos o seu exemplo para seguirmos os seus passos (2 CF 11-13). Na grande acção de graças do capítulo 23 da Regra Primeira, Francisco não esquece Jesus em nenhum dos grandes mistérios da fé: na Criação, na Encarnação, na Redenção e na Ressurreição e Juízo Final; mas se quisermos fazer uma pergunta sobre em qual deles Jesus tem maior relevo para Francisco, diremos que a Encarnação. (1 R 23, 3).

Traços do perfil de Jesus

 Quais os traços principais do rosto de Jesus para S. Francisco? Não vamos demorar-nos naqueles que pertencem já à fé cristã – Verdadeiro Deus, Verdadeiro Homem, Redentor, Ressuscitado – mas fixar-nos nos que estão mais iluminados pelo amor de Francisco. Em primeiro lugar.

Filho de Deus

Já nos referimos a este nome e dissemos que aparece umas 25 vezes, mas de forma implícita a sua presença é maior. Embora não apareça a palavra, o significado está presente na palavra Pai que S. Francisco usa tão frequentemente. Presente duma forma singular no Ofício da Paixão, pois aí o nome Pai tem uma força muito especial pela ousadia com que Francisco a emprega substituindo a palavra Deus que estava no texto original dos salmos. Sobretudo quando acompanhada do pronome meu: ― Meu Pai santo (1,5); ―Meu Pai santíssimo (2, 11).

A palavra filho não é só uma verdade dogmática, fria e exterior, mas uma expressão densa de afectividade e valor relacional. Diz que Jesus é querido, amado, envolvido de ternura… que Jesus é gerado, alimentado, sustentado na existência, segundo a segundo, pelo Pai, com a doação total do seu ser… É a mais radical forma de pobreza, pois tudo lhe vem do Pai; e, por isso, a mais instancável fonte de gratidão. a mais radical fonte de alegria e de júbilo.

Dado pelo Pai

Outro traço que marca o perfil de Jesus é o facto de ser dado pelo Pai, ver- dade sentida vibrantemente por Francisco. É encantadora a Segunda Carta aos Fieis.  Já oferecemos esse texto, mas repetimos: ― O Pai altíssimo, pelo seu arcanjo S. Gabriel, anunciou à santa e gloriosa Virgem Maria, que esse Verbo do mesmo Pai, tão digno, tão santo e glorioso, ia descer do céu, a tomar carne ver- dadeira da nossa humana fragilidade em suas entranhas (2 CF 4-5). E com a mesma emoção, numa alusão explícita ao momento do dom, o Natal, no Ofício da Paixão: ― Porque nos foi dado o santíssimo e dilecto Menino e por nós nasceu durante uma viagem e foi deitado num presépio (OP 15,7). E um pouco antes:

― Porque o santíssimo Pai do céu, nosso rei desde toda a eternidade resolveu enviar lá do alto a seu Filho dilecto e operou a salvação no meio da terra (OP 7, 3; cf. 11, 6).

Se S. Francisco chorava de alegria ao comer umas côdeas duras porque via nelas um dom de Deus, qual não seria a sua gratidão ao contemplar ― o santíssimo e dilecto Menino que lhe foi dado pelo Pai altíssimo?!. Daqui toda a teologia de Francisco sobre o Pai e sobre a providência divina. Daqui o seu encanto por Jesus. Daqui a ternura que enche toda a espiritualidade franciscana. Jesus era um tesouro, não só pela sublimidade da sua pessoa e da sua obra redentora, mas sobretudo por ser dado pelo Pai:  ―Copiosius  namque  donat  qui  maiore corde donat, diz S. Boaventura. O dom é tanto maior quanto maior é o coração que dá. No caso de Jesus trata-se do coração do próprio Deus. Daqui a paixão da S. Francisco pela Eucaristia. Tinha saudades de Jesus. Daqui o seu amor pelas criaturas. Não as amava só por terem sido criadas por Deus, mas porque via nelas uma ligação íntima com Jesus. Tudo foi criado para, ― um dia, na plenitude dos tempos, tudo ser instaurado em Cristo Jesus, tudo o que há no céu e na terra (Ef. 1, 10).

Jesus Nosso Irmão

Desse amor divino nasce em Francisco o sentido da fraternidade. Os textos são vibrantes: ― Oh! como é glorioso ter no céu um Pai santo e grande! Oh! como é santo ter um esposo consolador, formoso e admirável! Oh! como é santo e agradável ter um tal irmão e filho, aprazível, humilde, pacifico, doce e mais que tudo desejável, que deu a vida pelas suas ovelhas (2 CF 48-56). Foi esse coração divino que deu seu filho com tanta força, que comunicou ao homem sua mesma vida: ― Assim como o Pai vive e eu vivo pelo Pai, assim aquele que me come viverá por mim (Jo 6, 57). Tomás de Celano apanha com muita beleza a alma de S. Francisco ao escrever: ―Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a majestade (2 C 198). Feito nosso irmão.

Esta fraternidade concretiza-se de muitos modos na convivência de Jesus com os homens, mas há duas linhas particularmente fortes: uma, em relação ao Pai; e outra, em relação ao homem. Em relação ao Pai, a obediência; em relação aos homens, a solidariedade. Na sua obediência Jesus incorpora toda a humanidade. No drama da Paixão, desde a Oração da Agonia até ao grito “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, toda a humanidade se tornou “humanidade obediente”. Quanto à solidariedade, Jesus é como que o ― cabeça de família. Torna-se fiador que responde por todos os seus irmãos. Ora Jesus levou esta solidariedade até ao extremo. Podia ter mudado de programa, podia ter organizado um corpo de defesa, podia ter fugido. Não o fez. Foi até à morte. A Cruz é um monumento de fidelidade, de honra, de solidariedade, de fraternidade.

 Jesus Pobre

Para S. Francisco a pobreza não é a pobreza sem mais. Não pensa na pobreza como virtude ascética. Não pensa na pobreza como o mundo dos pobres. Para ele, a santa pobreza é a ― pobreza e humildade de nosso Senhor Jesus Cristo (2 R 12,4); a ―pobreza do altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe (UVC). Diz na 2 CF: ― E sendo Ele mais rico do que tudo, quis, no entanto, com sua Mãe bem-aventurada, escolher vida de pobreza (2 CF 5).

Porquê?… Porque é que o Verbo de Deus escolheu vida de pobreza?… Não sabemos. Pertence à Liberdade de Deus. Mas parece-nos que podemos fixar duas razões: uma, a verdade; outra, o sentido da pessoa. Se Jesus se apresentasse em trajes de grandeza, havia o perigo de os homens se perderem no caminho: em vez de se dirigirem e prenderem a Ele, Jesus, serem arrastados pela idolatria das grandezas materiais: a riqueza, o prestígio e o poder. Tal terá sido o significado das três tentações no deserto. Jesus afirmou a unicidade radical do Amor: ― Só a Deus adorarás. – Segunda, o sentido da pessoa. Jesus optou pela pobreza para facilitar a convivência com todos… com a pessoa de cada um: pobres, crianças, pecadores, samaritanos, gentios, etc. As riquezas, os títulos académicos, as fidalguias, os cargos públicos… ou mesmo as grandezas religiosas às vezes funcionam como biombos ou bastidores que dificultam o contacto com o homem na sua intimidade de pessoa. Ora, é na intimidade que nasce o amor.

Jesus Cristo Crucificado

 O Cristo Crucificado é o maior contemplado nas Legendas. Não assim nos Escritos de Francisco. As referências são relativamente poucas (PPN 7; 2 CF, 11; Ex 5, 3; Ex. 6, 1; 1 R 23, 3); e, na maior parte delas, limitam-se a uma alusão ao acontecimento. Não tem descrições: da flagelação, da coroação de espinhos, da crucifixão, das três horas na cruz…. da morte do Senhor. Isto não quer dizer que a figura do Senhor Crucificado não estivesse presente com insistência na sua mente e no seu coração. A prova mais eloquente é o Ofício da Paixão. Primeiro pela sua beleza humana; e, segundo, por ser uma oração composta por Francisco e por ele recitada, como ofício votivo, todos os dias. Mas significativo ainda é o facto de quase silenciar os sofrimentos físicos e as descrições sangrentas. A Sua oração é silêncio adorador, é contemplação emudecida, é nobreza de alma ajoelhada.

Temos, pois, os seguintes traços. Filho do Pai, Dado, Nosso Irmão, Pobre e Crucificado.

Há ainda uma diferença que não se pode omitir: a atenção dada à humanidade de Jesus. O primeiro milénio cristão viveu principalmente a divindade de Jesus. A divindade de Jesus aparece bem patente no tímpano das grandes catedrais. Com S. Bernardo começa a impor-se a devoção à humanidade de Cristo, que já fora apontada por Orígenes, Santo Anselmo e S. Pedro Damião.

Esta diferença tem uma importância enorme e revolucionária. A devoção à divindade – Cristo Senhor, Cristo Rei, Cristo Pantocrator, Cristo Altíssimo, etc.

é a teologia da sociedade hierárquica e piramidal do tempo: Papa, Imperador, Senhor feudal, Clero, Povo. A devoção à humanidade faz germinar uma socie- dade diferente, caracterizada pela igualdade. Lothar Hardick, em Francisco Símbolo da Mudança da Religiosidade da Idade Média, diz: ―Toda a estrutura do sistema vem do alto para baixo, de cima para a base. Cada superior atribui o feudo e o poder ao inferior. Todo o tecido social aparece com a sua origem em Deus, o Senhor Altíssimo. Para além do Papa e do Imperador, numa graduação descendente até ao último nível social. Encontramos esta mesma concepção também fora do direito feudal. Tudo está ordenado de acordo com o nível da sua relação interior com Deus. o Senhor Altíssimo. Com S. Bernardo, porém, a nova ideologia mantinha-se dentro do mundo monacal. S. Francisco, sem pensar em revoluções, levado pelo seu amor a Jesus, fez com que fosse surgindo no mundo uma nova relação entre os homens, não só de igualdade, mas de fraternidade.

Nós franciscanos temos, por isso, uma grande dívida aos homens do nosso tempo: oferecer-lhes este retracto de Jesus. Francisco conseguiu assimilá-lo, reproduzi-lo… na sua vida e na sua palavra. Foi pena que os seus filhos não lhe apanhassem o segredo: uns fixaram-se no serviço da Igreja; outros fixaram-se na sua santidade pessoal. E Jesus ficou na sombra. Estamos tentando recuperá-lo, mas, por enquanto, ainda não soubemos passar do estudo para a pregação e desta para a vida… porque não começou pelo coração. É um desafio que continua.

 

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA, RECONQUISTA

DA CONTINGÊNCIA E ACTUALIDADE

DO PENSAMENTO FRANCISCANO

 por Prof. Dario Antiseri*

  

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* Conhecido professor italiano de Filosofia. Pronunciou esta conferência durante o Capítulo Geral dos Frades Menores em Assis (setembro de 2006).

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  1. “Absolutos terrenos”: outras tantas negações do “Absoluto transcendente”

 O século XX, acabado de expirar, abriu com três imponentes movimentos filosóficos, o positivismo, o idealismo e o marxismo. Absolutizando ou divinizando o homem, pretenderam, com motivações diferentes, obliterar todos os espaços da fé.

Para os materialistas, a transcendência é pura ilusão; para os positivistas, Deus é uma hipótese inútil; para os idealistas, as verdades da fé não são a revela- ção de Deus ao homem, mas representações míticas de que apenas emerge o cerne racional. Com Marx, as coisas vão mais além. De facto, para Marx, a fé em Deus não passa duma hipótese inútil, uma ilusão ou um mito que, parecendo falar de Deus, na realidade fala de coisas totalmente ―imanentes. Segundo Marx, a fé em Deus é nefasta para o homem; é uma enfermidade cujas causas se devem comba- ter e extirpar. ― A luta contra a religião – lê-se em Pela crítica da filosofia do direito de Hegel – é a luta contra um mundo cuja quinta-essência espiritual é a religião (…). A religião é o suspiro de alívio da criatura oprimida, o coração de um mundo desapiedado (…). É o ―ópio do povo.

A fé não é apenas danosa para Marx. Também o é para Freud, que vê na religião ―uma neurose obsessiva universal . Numa palavra, para os marxistas e para o ateísmo psicanalítico, Deus tornou-se incómodo. E incómodo é igualmente, de um modo geral, para o existencialismo ateu, como é o caso de Sartre, Merleau-Ponty ou Camus. O homem, escreveu Sartre, ―é uma paixão inútil. Deus não existe e ― nós não temos, quer atrás quer à frente, no domínio luminoso dos valores, nem justificações nem desculpas. Estamos sós, sem apelo nem agravo. E depois dos existencialistas, os seus adversários, os estruturalistas. Estes, em nome duma ― razão oculta, quiseram condenar a ― razão consciente e, com ela, todos os vestígios de transcendência. Claude Levi-Srauss: ― No princípio do mundo o homem não existia, e tão-pouco existirá no fim. À pergunta sobre ―o que há a esperar?, Jacques Lacan responde: ―Nada, absolutamente nada. Não há lugar para qualquer espécie de esperança. E não teriam nenhum sentido literal, segundo os neopositivistas do Círculo de Viena, as proposições que falam de ― Deus, da ― alma imortal, da ― transcendência ou da ― Providência. Estes conceitos e as asserções que os incluem seriam puros ― nonsense, pelo facto de serem conceitos e asserções não verificáveis empiricamente, ou seja, não traduzíveis ou redutíveis à linguagem ― coisística da física. ― Nenhum Deus nem diabo – dirá Carnap – poderão dar-nos alguma vez uma metafísica. E para Alfred J. Ayer, as asserções da fé, como as teorias metafísicas, ― são matéria exclusiva dos psicanalistas.

Todas estas perspectivas filosóficas aqui evocadas pretenderam destruir o espaço da fé. A fé no Deus de Jesus Cristo é proibida por ― absolutos terrenos que se apresentaram como outras tantas negações do Absoluto transcendente. De facto (e para sermos mais claros ainda), se o positivismo fosse verdadeiro, a fé não passaria então de pura ilusão, ou de um resíduo de mentalidades ultrapassadas; se o neopositivismo fosse válido, então a fé não passaria de um acervo de múltiplos nonsense; e assim por diante. Estas perspectivas filosóficas ou absolutos terrenos propostos e aceites e sempre propagandeados como indubitáveis – cientismo materialista, idealismo (em grande parte), positivismo, neopositivismo, movimento psicanalista (em grande parte), marxismo, existencialismo (em boa parte), estrutura- lismo – constituíram no século que nos ficou às costas as tropas de assalto às verdades cristãs.

2.  A reconquista da “contingência”

 A fé é graça a parte Dei e opção a parte hominis. No entanto, a opção a parte hominis seria impossível num universo em que se provasse que o homem é apenas corpo; num universo em que a vertente científica fosse a única linguagem dotada de sentido; num mundo em que o sentido da vida de cada indivíduo e da humanidade, na sua totalidade, fosse determinado por inelutáveis leis do desenvolvimento da história; em que toda a realidade se reduzisse apenas ao universo físico. Portanto, para que a fé seja possível é preciso que primeiramente sejam destruídos os ―absolutos terrenos, as supostas certezas indubitáveis, totalizantes e negativas da transcendência. Um saber absoluto é um homem absoluto, e o homem absoluto dispensa com desprezo o Redentor.

Assim sendo, se o século passado se abriu, como se disse ao princípio, com imponentes movimentos filosóficos, coligados pela ideia de que ― homo deus est, este fechou-se com a lúcida noção duma consciência reconquistada, sob a luz clara dos limites da razão humana. Tratou-se de concepções filosóficas que mantiveram encadeadas e sequestradas as mentes de muitos homens e mulheres, impedindo-as de qualquer abertura à esperança religiosa. Nos nossos dias já não é possível esconder o inventário das falências de filosofias como o positivismo, o idealismo, o marxismo e o neopositivismo – falências devidas a uma ybris gerada pelo abuso sistemático da razão.

Ao findar o século vimos sepultar as ― grandes ilusões e as orgulhosas presunções de filósofos que queriam ser os coveiros de Deus. Mas a morte de Deus não se verificou. O que, sim, desapareceu foi a fatal presunção segundo a qual o homem seria capaz de autosalvação, de se salvar a si mesmo da voragem do absurdo.

A filosofia contemporânea, nas suas vanguardas mais perspicazes desbaratou as pretensões de um homem que tentou erguer bezerros de ouro – que negou Deus e povoou a terra de monstros e Gulagues. Neste esforço de demolição dos ― absolutos terrenos mostraram-se particularmente eficazes, a meu ver, os instrumentos conceptuais forjados no arsenal epistemológico-hermenêutico. Assim, por exemplo, foi Karl Popper quem desferiu o golpe de misericórdia no cientismo: as teorias científicas são e continuam a ser desmentíveis; as dissertações não científicas, como as teorias filosóficas, não são de nenhum modo insensatas (como pretendiam os neopositivistas); o cérebro não explica a mente; o determinismo é falso; falso é o consequente fatalismo; e o futuro fica aberto às nossas opções e ao nosso empenhamento de cidadãos livres e responsáveis numa sociedade aberta. Hans Georg Gadammer levou-nos a compreender que nós lemos o mundo com uma linguagem feita de conceitos não absolutos, de apriorismos temporalizados, pelo que deixaram de ser possíveis as grandes fantasias que pretendiam exibir fundamenta inconcussa. Contra o pseudo racionalismo daqueles que, como os marxistas, se julgaram detentores das leis inelutáveis da história, bateu-se não apenas Popper mas Friedrich A. Von Hayek – prémio Nobel da economia de 1974 – que, insistindo nas inevitáveis consequências não intencionais das acções humanas intencionais, chegou a concluir, numa perspectiva anticonstrutivista, que ―o homem não é e nunca será senhor do seu próprio destino . Kelsen, Popper e Hayek – e certa- mente não só eles – puseram a nu a total inconsistência das argumentações em favor do Estado totalitário, oferecendo ao mesmo tempo razões lógicas, epistemológicas e económicas da ―sociedade aberta (Popper) ou ― Estado de direito (Kelsen) ou ―Grande sociedade (Hayek).

3.  Interrogação metafísica e resposta religiosa

 Dentro de semelhante horizonte – onde, com evidência, vemos gravados os traços da contingência humana – reemerge, mais irreprimível que nunca, a pergunta metafísica: porquê o ser em vez do nada? Pergunta metafísica que deixa a descoberto o seu ponto fraco: o sofrimento, particularmente o sofrimento inocente. Porquê o sofrimento? Mas, sobretudo, porquê o sofrimento dos inocentes? Tal interrogação – anota com profundidade Norberto Bobbio – é uma pergunta com sentido que fica sem resposta, ou melhor, que remete para uma resposta que se me afigura difícil continuar a chamar ―filosófica .

Não é a ciência que nos deve dizer o que temos a fazer. Não é a ciência que nos deve ensinar em que é que podemos esperar. A ciência, por princípio, não responde às perguntas que são para nós mais importantes. O porro unum necessarium está fora da razão científica e não é pertença da razão filosófica: a filosofia não salva. A filosofia pode levar à perdição mas não salva. ― Exactamente porque as grandes respostas não estão ao alcance da nossa mente, o homem – é ainda Norberto Bobbio quem o diz – continua a ser um ente religioso, apesar de todos os processos de desmitificação, de secularização e de todas as afirmações da morte de Deus que caracterizam a idade moderna e, mais ainda, a contemporânea.

― Crer em Deus – escreveu Ludwig Wittgenstein – quer dizer reconhecer que, afinal, as realidades do mundo não são tudo. O séc. XX abrira-se com as filosofias que tinham como certo que os fenómenos do mundo e os homens eram tudo; e encerrou-se consciente da presunção fatal de todos os que pretenderam impossibilitar e anular a experiência religiosa, privando a humanidade da sua maior riqueza. Foi assim que se reconstruiu o espaço da fé, onde é possível a opção religiosa, a única que nos permite esperar que o carrasco não tenha a última palavra sobre a vítima inocente.

A destruição dos absolutos terrenos não é nem deve ser de nenhum modo substituída pela vitória do nada, do nonsense, ou seja, do niilismo. A consciência da contingência humana não é naufragar no absurdo. É a consciência de que a salvação do absurdo não é uma construção humana, e que o sentido que não pode ser construído pode ser invocado. Porém – e aqui voltamos ao ponto de maior relevância – a invocação só é possível no mundo da contingência. Por isso nunca se agradecerá bastantemente aos pensadores que ensinaram que o homem não é o dono do sentido, mas apenas um mendigo seu. E que, além disso, nos fizeram compreender que ―só um Deus nos pode salvar. A falta de sentido acaba na angústia, naquela ― doença mortal que, para Kierkegaard, é o desespero. A ― consciência angustiada – afirmava Kierkegaard – compreende o Cristianismo, como um animal esfaimado, que, se lhe puserem diante um pedaço da pão ou uma pedra, compreende que aquele é para comer e esta não. É por essa razão que a consciência angustiada compreende o Cristianismo.

Quaestio magna mihi factus sum, terra difficultatis – confessava Agostinho. E Heidegger e Marcel chamaram a atenção para o facto de essa metafísica ser uma questão que envolve o próprio interrogante. Não é um ―problema; tem toda a natureza duma ―invocação. É uma ―interrogatio quanto à forma; uma ― rogatio apenas quanto à substância. Por isso não admite soluções presumidamente racionais e unívocas, absolutas e incontroversas. Admite somente opções de fé. Se a interrogação metafísica quiser uma resposta absoluta, terá apenas uma resposta de fé, uma resposta religiosa. E isto quer dizer, inequivocamente, que também a pergunta era religiosa, ou seja, também uma invocação. Invocação de salvação ou, mais precisamente, de salvação do absurdo, invocação daquele sentido absoluto da vida que não conseguimos construir por nós mesmos. E quem escolher o absurdo, ou seja, o ateu, não é mais cientista do que o crente. Num tal horizonte, é absolutamente racional buscar uma resposta religiosa para uma invocação religiosa. Foi isto que Francisco de Assis fez. Escancarou o coração e a mente ao convite de Cristo. Em Os Contos de Chassidim, Martin Bubber fala do Rabi Mendel de Kozk, que ―espantou alguns homens doutos, seus hóspedes, com esta pergunta: ―Onde é que Deus mora? Riram-se dele. ―Que estás a dizer para aí, se o mundo está todo cheio da sua glória? Mas ele mesmo soube responder à sua própria pergunta:

―Deus mora onde o deixarmos entrar. ―Abri as portas a Cristo, foi o brado de João Paulo II: aliás um traço essencial da espiritualidade franciscana – do pensamento e da acção do franciscanismo.

Dom a parte Dei, escolha a parte hominis – a fé, ou antes, a escolha da fé é por vezes considerada uma espécie de refúgio oportunista – um refúgio onde Deus não seria mais do que um Deus tapa-buracos. O medo das palavras é, todavia, o mais mesquinho dos medos, pelo que, se o buraco a ser tapado for o sentido da vida de cada homem e do universo inteiro, tal buraco a tapar será um autêntico báratro – o báratro do sem-sentido, que só Deus pode colmatar. A todos aqueles que replicarem com a acusação de irracionalismo, poderíamos lembrar a aposta de Pascal, donde saiu uma versão em vulgata numa página de Ludovico Antonio Muratori: ― Enquanto Henrique IV, Rei de França, andava a caçar, passou por perto o padre Gioiosa, capuchinho, que fora no século duque e general do exército. Sabendo da presença do Rei, correu a saudá-lo. Ao ver o bom do religioso todo suado, cheio de pó e de cansaço, disse-lhe a rir: Padre Gioiosa, e se não fosse ver- dade o que se diz da outra vida? Sem contemplações, respondeu o capuchinho:

― Tanto pior para Vossa Majestade, se for verdade! Portanto, quem tem mais

― razão, Henrique IV ou o padre Gioiosa? A esses católicos, só eles ― racionalistas , sempre prontos a acusar os outros de fideístas, desejaria perguntar em que base metafísica aceitam um Deus que morre numa cruz ou crêem na presença de Cristo na eucaristia. Como diz Luigi Guissani, ao fim e ao cabo, uma opção destas é decisiva.

4.  Guilherme de Occam e a defesa da autonomia, da liberdade e do espírito de iniciativa da pessoa humana.

 ―A maior parte das grandes emancipações do espírito, como dos progressos no reconhecimento da dignidade dos homens que marcaram a história da civilização ocidental apoia-se no postulado individualista implícito no nominalismo de Occam (1280-1349). Da simples verdade enunciada por este – só o ser singular é que é ontologicamente real e nenhuma entidade colectiva (privada de existência como tal) tem o direito de o subordinar – conclui-se que cada indivíduo se erige como ser autónomo dotado de um poder real sobre si próprio. Isto mesmo escreveu Alain Laurent. É uma observação que deixa transparecer o enorme relevo do pensamento franciscano em defesa da autonomia e responsabilidade de todo o homem e de toda a mulher a respeito das nefastas, omnívoras e liberticidas coisificações dos conceitos colectivos, a que Max Weber chamava Kollektiv-begriffe, tais como, o ―Estado, a ―classe , o ―parido , e por aí adiante. A verdade é que o individualismo (tenhamos presente a Escola dos moralistas escoceses, a Escola austríaca de economia, Max Weber, Karl Popper, Raimond Boudon), não se opõe ao altruísmo, mas ao colectivismo. Conforme sublinhou José Ortega y Gasset, ―foi precisamente o individualismo que enriqueceu o mundo, e foi esta riqueza que fundamentalmente difundiu a árvore humana. Por seu lado, um douto padre franciscano, Orlando Todisco, num livro publicado há anos (Duns Escoto e Guilherme de Occam. Da ontologia à filosofia da linguagem, 1989) lembrava que a luta de Occam contra o colectivismo e a favor do individualismo foi uma luta ―pela recuperação da liberdade dos homens, pela defesa da sua criatividade e a afirmação da sua autonomia.

O individualismo, enquanto defesa da pessoa humana contra as nunca assaz- mente debeladas, antes sempre ressurgentes tentações liberticidas das várias for- mas de colectivismo, constitui um ponto de apoio da tradição do pensamento franciscano que se insere nas razões do voluntarismo. São estas posições filosóficas que fazem dos mestres franciscanos autênticos clássicos do pensamento filosófico. Como se sabe, um clássico é um contemporâneo do futuro.

5.  As razões do voluntarismo

 A defesa que Escoto (1266-1308) faz da liberdade leva-o a uma crítica radical do necessitarismo naturalista dos filósofos greco-árabes. Deus é livre e, ao criar, quis os seres particulares na sua individualidade – e não as suas naturezas ou essências. Sendo contingente na sua origem, contingente é o próprio mundo e tudo o que há nele, inclusivamente as leis morais. Posto isto, quais são os direitos necessários e absolutos? São somente os que estão contidos na primeira tábua de Moisés, ou seja, a unicidade de Deus e a obrigação de o adorar a ele só. Sem dúvida que a inteligência capta a verdade dos preceitos da segunda tábua. Mas a obrigatoriedade destes brota somente da vontade legislativa de Deus, na ausência da qual teríamos uma ética racional cuja transgressão seria irracional mas não pecaminosa. O mal é pecado, não erro – como dizia Sócrates. Na Ordinatio, diz Escoto: ―Assim como Deus podia agir diversamente, assim podia estabelecer outras leis que, a serem promulgadas, seriam rectas, pois nenhuma lei é tal se não enquanto estabelecida pela liberdade acolhedora de Deus (―Ideo sicut potest ali- ter agere, ita potest aliam legem rectam statuere, quae si statuta a Deo, recta esset, quia nulla lex nisi quatenus a voluntate divina acceptante est statuta”). Numa palavra, bem está o que Deus manda. Tanto assim que – continua Escoto na sua Ordinatio – algumas coisas que são proibidas como ilícitas poderiam tornar-se lícitas se o legislador as tivesse ordenado ou, ao menos, as permitisse, como por exemplo o furto, o homicídio, o adultério e outras coisas semelhantes, as quais não implicam uma malícia inconciliável com o fim último, da mesma maneira que os seus contributos não incluem uma bondade que necessariamente conduza ao  fim último .

O voluntarismo de Escoto é a consequência directa da sua defesa da transcendência de Deus infinito – uma defesa sem compromissos que entra em colisão com o ―hiper-racionalismo em que prevalecem exigências mais pagãs do que cristãs. Na realidade, aquilo que se disse da vontade de Deus deve ser dito, com as devidas proporções, da vontade do homem. De resto, Escoto sublinha várias vezes o papel orientador da vontade que age sobre o intelecto, orientando-o numa determinada direcção, excluindo outras. A luz do intelecto é necessária, mas não determinante. Para nos curarmos duma doença é preciso conhecer o remédio ade- quado, mas o acto de tomar o remédio não é necessário mas livre, porque, quanto à vida, quem quer pode preferir a morte.

As pretensões jusnaturalistas avançadas pela força da razão pura afiguram-se-nos, nos nossos dias, cada vez menos convincentes, que mais não seja pelo facto de não ser possível logicamente passar de proposições descritivas a asserções prescritivas, por não ser possível extrair de toda a ciência disponível um grão sequer de moral. A ciência descreve, explica e prevê, sempre mediante teorias falsificáveis, mas não estabelece valores. A ciência sabe, a ética ajuíza. Não desejaria ser fastidioso revisitando aqui a longa, trabalhosa mas certamente rica história da disputa entre racionalistas e voluntaristas, mas há uma pergunta que não posso dispensar-me de fazer: será pelo Evangelho ou pela razão que um cristão sabe o que está bem e o que está mal? Por qual das razões o sabe? Pelas razões de quem? E se fosse a razão a estabelecer o bem e o mal absolutos, não estariam porventura na razão os que afirmam que, nesse caso, ―não era preciso que Maria desse à luz?

A velha disputa entre racionalistas e voluntaristas configura-se nos nossos dias – dentro da análise linguística e epistemológica – num desencontro entre cognitivistas e não-cognitivistas. Um desencontro, aliás, que a argumentação lógica faz pender para o lado do voluntarismo. Será, sem dúvida, decepcionante verificar que pode não haver uma base racional válida para todos as nossas convicções éticas e políticas de fundo. Mas, pergunta-se, não será fruto de ambição fatal considerar o homem como senhor absoluto de um sentido absoluto e construtor – senhor do bem absoluto? Em suma: será que Deus quer o bem porque o bem é bem ou é bem o que Deus manda? Quem tem melhor conhecimento do homem, da natureza humana, Deus ou o homem? O ódio é tão natural como o amor. E Nosso Senhor torna imperativo o amor. Em que medida é natural dar a outra face? Em que medida é natural beijar o leproso? Acaso a mensagem de Francisco é um teorema extraído da especulação de algum filósofo ou o testemunho de quem abraçou o imperativo evangélico do amor?

“Eritis sicut dei cognoscentes bonum et malum” – a antiga tentação afagou os nossos mais baixos instintos: a prepotência do homem sobre o homem; o orgulho luciferino do homem que se julga um deus, que ousou substituir-se a Deus e o tentou apagar, povoando ao mesmo tempo a Terra de ídolos ávidos de sangue. Até nisto se patenteia a extrema actualidade do pensamento franciscano: Francisco não pretendeu fazer ―professores, quis testemunhas do amor segundo Jesus Cristo.

6.   Que podem ensinar-nos ainda hoje Roberto Grossatesta e Rogério Bacon?

 Não se deve subestimar aqui o contributo do franciscanismo para a génese da filosofia empírica da natureza. Assim, apenas a título de exemplo, impõe-se lembrar que é no âmago da sua metafísica da luz que Roberto Grossatesta (1175 – 1235) insere e sistematiza conhecimentos de natureza puramente científica e empírica, como as relativas à propriedade dos espelhos e à natureza das lentes. Mas, à parte isso, é notável o facto de Grossatesta ter expresso com extrema lucidez um princípio que pouco depois esteve na base do pensamento de Galileu e da física moderna: ―A utilidade do estudo das linhas, dos ângulos e das figuras é da maior importância, porque sem elas não é possível conhecer coisa alguma da filosofia natural. Elas valem de modo absoluto em todo o universo e nas suas partes. Foi Nicolau Abbagnano quem afirmou que, embora misturadas com elementos teológicos, místicos e metafísicos, as novas pesquisas ―denunciam um novo curso da investigação filosófica e uma renovação dos seus horizontes. Seja como for, Ch. Singer escreveu: ―foi o franciscano Roberto Grossatesta quem determinou a direcção fundamental que assumiram os estudos físicos no século XIII e XIV. Mas se Grossatesta pode ser considerado como o iniciador do naturalismo de Oxford, o seu representante máximo é Rogério Bacon (1214 c. 1292 c.). Aluno de Grossatesta em Oxford, nomeia também, entre os seus predecessores e mestres, a Pietro Peregrino, autor em 1269 de uma Epistola de magnete, de que falará mais tarde, em 1600, Gilbert, o grande estudioso do magnetismo. Embora Aristótelos fosse para Bacon (como já o fora para Averróis) ― a última perfeição do homem não quer isso dizer de modo algum que a busca da verdade tenha acabado em Aristóteles, pois a verdade, segundo o entendimento de Bacon, é filia temporis e o seu crescimento não é isento de obstáculos. É exactamente na primeira parte da Opus Maius que Rogério Bacon desenvolve uma análise interessantíssima aos obstáculos que se interpõem à obtenção da verdade. Trata-se de reflexões que antecipam e corroboram as que um outro Bacon, ou seja, Francisco Bacon, conduzirá a respeito dos idola. Para Rogério Bacon são quatro os obstáculos que nos retêm na caverna da nossa ignorância: a) o exemplo da autoridade frágil e ingénua;

  1. b) a incrustação de hábitos continuados; c) as ideias do vulgo estulto; d) a ocultação da ignorância pela ostentação duma aparente A verdade é filha do tempo e a ciência é obra não do indivíduo singular, mas da humanidade que, precisamente com o passar do tempo, elimina pouco a pouco os erros antes cometidos. É deste modo que o saber progride. São dois os meios pelos quais chegamos ao conhecimento: ― pela argumentação e pela experimentação – e é pela experiência externa (a que exercemos pelos sentidos) que chegamos às verdades naturais; ao passo que é pela experiência interna (a da iluminação divina agostiniana), que chegamos às verdades sobrenaturais. Apoiante, juntamente com Grossatesta, da fundamentalidade da matemática, estudioso da física e particularmente da óptica, Bacon compreendeu a lei da reflexão e da refracção da luz, estudou as lentes e é a ele que se atribui, para além da invenção dos óculos e dos telescópios, o ter intuído, entre outras coisas, o voo, o uso dos explosivos, a circum-navegação do globo e a propulsão mecânica. Escreve ainda Ch. Singer: ―A previsão de uma só destas descobertas não seria porventura digna de memória, mas é significativo o facto de coincidirem (e em tal número) numa única mente. Também para Rogério Bacon, como depois para Francisco Bacon, saber é poder: ―as obras da sabedoria (…) estão como que defendidas por leis seguras e levam eficazmente à meta pretendida. Uma vez mais, o caminho que leva a esta meta é o da experiência, por- que sem experiência nada se pode conhecer de maneira suficiente.

Em conclusão, é com Roberto Grossatesta e Rogério Bacon, embora não apenas com eles – baste-nos lembrar aqui Alberto Magno –, que nasce e se desenvolve lentamente um filão matemático e experimental no interior da filosofia escolástica. Certamente que o facto de o património científico-tecnológico ter ficado até então fora da ― filosofia não significa de nenhum modo que as urgências da vida prática não tivessem aguçado o engenho de homens preocupados com a solução de problemas. Bastará evocar aqui os vários tipos de jaezes, moinhos de água, relógios mecânicos, fiação da seda, manguais articulados, moinhos de vento, fabrico de lentes e de papel, extracção de minério. É verdade que estas e tantas outras soluções técnicas engenhosas existiam, mas existiam precisamente alheias à filosofia. Grossatesta e Rogério Bacon situam-se exactamente no início do movi- mento de pensamento que, reunindo teoria e prática, levaria à revolução científica.

Porquê todas estas reflexões a propósito de Roberto Grossatesta e de Rogério Bacon? Porquê insistir neste cunho empírico-científico do seu pensamento? Simplesmente porque hoje, mais do que ontem, a investigação científica resolve problemas que outros criam incessantemente. Num mundo em que o cientismo, cego perante os valores éticos, impõe que é lícito fazer tudo o que tecnicamente é possível, os homens de fé não podem desinteressar-se do avanço da ciência, particular- mente da investigação biomédica, e deixar a pessoa humana à mercê duma nova barbárie tecnológica capaz de precipitar o homem feito à imagem e semelhança de Deus nos sorvedouros cavados por homens ―construídos pela vontade de outros homens. Nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente lícito. Encontramo-nos numa situação problemática que nos obriga não só a saber o que é tecnicamente possível, como a estar cientificamente apetrechados para combater a mitologia científica disposta a espezinhar a inviolável sacralidade da pessoa e a recusar espaço ao sagrado. A tradição franciscana não pode deixar-nos tranquilamente indiferentes face ao desenvolvimento da ciência (sobretudo biomédica), quer em ambientes de formação, quer na elaboração de projectos para centros científicos de pesquisa a alto nível e de grande prestígio internacional. Serve-se o Evangelho servindo o homem; e melhor se servirá onde mais sombrias forem as ameaças à sua dignidade e integridade. Os problemas suscitados pela bioética estão no primeiro plano das preocupações de Bento XVI e não podem deixar de constituir uma tarefa da maior urgência para todo o vasto mundo católico. Que se pode e deve fazer nesse sentido?

7.   Prática da pobreza e teoria da riqueza: o contributo da Escola franciscana do séc. XIII na génese do capitalismo

 É ―delirantemente doutrinária a tese segundo a qual ―o espírito capitalista tenha podido surgir apenas como emanação de certas influências da Reforma, ou que o capitalismo, como sistema económico, é um produto da Reforma. O simples facto de algumas formas importantes de empresa capitalista serem notoriamente bastante mais antigas do que a Reforma contraria duma vez por todas semelhante opinião. Isto mesmo declara Max Weber numa página do seu célebre escrito A ética protestante e o espírito do capitalismo. É uma página esquecida por muitos estudiosos que, como escreveu Kurt Samuelsson em Economia e religião, abraçaram, defenderam e difundiram a ideia de um indiscutível e exclusivo nexo entre a ética calvinista e o espírito do capitalismo ―como uma mercadoria a aceitar, sem mais indagações, como verdade evidente em si mesma, que não exige confirmação nem aprofundamento. Reside exactamente aqui uma das razões porque, sempre que não se bloquearam as investigações noutros sentidos, foram atiradas para a penumbra do esquecimento, ou, em qualquer caso, para o domínio da irrelevância, estudos que versavam as relações entre o catolicismo e o capitalismo.

De há um tempo para cá, todavia, conhecem-se as contribuições ― económi- cas da tardo-escolástica espanhola – um movimento de ideias que associa como protagonistas, entre outros, os dominicanos Francisco de Vitoria (1495-1560) e Tomás de Mercado (1500-1575), o bispo agostiniano Miguel Sólon (1538-1620) e os jesuítas Luís de Molina (1535-1600), Juan de Mariana (1535-1624), Francisco Suarez (1548-1617) e Juan de Lugo (1583-1660). As funções da propriedade privada, os princípios da taxação, o valor das mercadorias, a relação entre preços e conhecimento, o interesse e a actividade bancária, o comércio (com particular incidência no comércio internacional), são alguns dos temas económicos tomados em consideração pelos tardo-escolásticos, cujas ideias, apropriadas por Grozio, Pufendorf e pelos fisiocratas, influíram de maneira decisiva na Escola Escocesa de Ferguson, Hutcheson e Smith. Entre os tardo-escolásticos devem ser lembrados os franciscanos Juan de Medina (1490-1548), Luís de Aleale e Henrique de Villalobos. Mas se a tardo-escolástica espanhola representa um verdadeiro thesaurus quanto à história das teorias económicas e à compreensão dos factos económicos, o mesmo se deve dizer hoje da Escola franciscana do séc. XIII.

Prática da pobreza e teoria da riqueza – assim poderíamos sintetizar a ― teologia  económica franciscana, em que a escolha da pobreza mais rigorosa induz muitos franciscanos, desde a época de Duzentos, a reflectirem sobre o uso apropriado dos bens terrenos por parte dos cristãos e, portanto, sobre a circulação do dinheiro, a formação dos preços, os contratos, a moralidade do investimento socialmente produtivo e a pessoa do mercador. É justamente na acção do mercador que a Escola franciscana – com Pietro di Giovanni Olivi, Alexandre de Alexan- dria, Escoto, o catalão Eiximensis, o piemontês Astesano, o provençal Francisco de Meyronnes e outros mais – vê ―a profissão-chave da felicidade pública, uma profissão que torna possível o intercâmbio entre os produtores, consumidores e profissionais das várias atribuições, e, portanto, o mercado como ―sistema lógico, dotado dum critério de comunicação interna.

  1. Schumpeter, na sua monumental História da análise económica, escreve que foi o dominicano Santo Antonino, arcebispo de Florença, quem sustentou a função do empréstimo de dinheiro quer para o consumo quer para o investimento lucrativo. Mas, como bem evidencia Bazzichi, as coisas não são bem assim, uma vez que Santo Antonino se reclamava ele próprio das ideias de São Bernardino de Sena (1380-1440), o qual, por sua vez, as recebera de dois franciscanos: Pietro do Giovanni Olivo (1248-1298) e Alexandre de Alexandria (1270-1314). Pergunta-se: face à proibição canónica da usura, será lícito distinguir entre o empréstimo duma qualquer soma de dinheiro e o empréstimo duma soma de dinheiro inscrito ou a inscrever no processo produtivo, ou seja, empregada num investimento produtivo programado ou já realizado? É esta a resposta de Olivi: ― Aquilo que, com firme decisão (firmo proposito) for destinado a algum lucro provável, não só tem o significado de simples dinheiro ou de qualquer mercadoria, mas possui em si alguma semente de lucro, a que chamamos habitualmente capital. Por isso não só deve manter o seu próprio valor, como um valor acrescido (sed et valor supera- diunctus)”. Por aqui se vê como Olivi estabelece a coexistência entre o interesse do capital e a proibição canónica da usura – testemunho que desmente o que afirmava Eugen von Boehm-Bawerk na sua História e crítica das teorias do interesse e do capital, ou seja, que foi Calvino o primeiro teólogo a alinhar contra a proibição do interesse. Se é verdade que os tardo-escolásticos nos deixaram reflexões sobre o valor dos bens económicos, também é verdade que muito antes deles os franciscanos de Duzentos, em primeiro lugar Olivi, tinham compreendido que o valor duma coisa é dado pela raritas, pela virtuositas e pela complacibilitas: e é esta a preferência que uma pessoa dá a um determinado bem para satisfazer uma necessidade por oposição a outra, estabelecendo uma gradualidade entre os mesmos. Trata-se – anota Bazzichi – da melhor e mais moderna das teorias do valor da Idade Média.

Assim foi nas origens. Nos nossos dias, porém, numa situação de acentua- das e globalizadas mudanças (de ideias, mercadorias e dinheiro), com as vantagens e perigos que comportam para os países mais pobres, é de perguntar qual será a posição dos seguidores do ― poverello face à globalização? Quais as suas iniciativas para que a mensagem de Francisco não fique à margem de um mundo que muda vertiginosamente e que, como advertiu João Paulo II, pode ocasionar novas e mais dissimuladas formas de colonialismo? Não serão as experiências dos franciscanos – tantas e de há tantos séculos – no campo das relações com o mundo muçulmano uma verdadeira via áurea para o futuro? Num mundo agora dividido em dois blocos que se defrontam, o cristão e o muçulmano, foi Francisco quem, rompendo barreiras, se fez conduzir até junto do Sultão. Embora a tentativa de paz de Francisco se tenha frustrado e a guerra tenha prosseguido, a sua lição e o seu empenhamento continuam vivos e actuais. Hoje como ontem!

8.  São Boaventura: “ A ciência filosófica é caminho para outras ciências”

Até aqui, portanto, algumas das razões que tornam actual (e consequente- mente cheio de responsabilidades para o presente), o pensamento franciscano. Há mais, porém. ―Atinja o homem o conhecimento da natureza e da metafísica e suba até às mais altas culminâncias do ser espiritual. Se, porém, uma vez aí chegado, por aí se ficar, impossível será que não caia no erro, a menos que seja ajudado pela luz da fé e professe que Deus é uno e trino, omnipotente e a bondade suprema (…). Por isso é que esta ciência precipitou e obscureceu os filósofos (pagãos) por ainda não poderem beneficiar da luz da fé (…). A ciência filosófica é caminho para outras ciências, mas quem nela quiser ficar, cairá nas trevas. Este trecho – que lemos nas Collationes de donis Spiritus Sancti – exprime admiravelmente a função do saber filosófico. Por alto e sublime que seja, se o saber filosófico fixar o olhar apenas em si e não o dirigir para um saber mais alto, teológico ou místico, será uma fonte de erros. Boaventura não é, pois, contra a filosofia em geral, mas contra aquela filosofia incapaz de captar a tensão entre o finito e o infinito, entre o homem e Deus, no concreto do nosso ser, tendencialmente orientado para a salva- ção mas constantemente exposto ao mal.

O problema de Boaventura não é, pois, o de hostilizar o uso da razão e de toda a filosofia, mas distinguir ―entre uma razão e uma filosofia ou teologia cristã e uma filosofia não cristã, entre uma razão que é um meio da fé para chegar à visão beatífica (…) e uma razão que, fechando-se na sua própria auto-suficiência, nega o sobrenatural em si (T. Gregory). Ele é contra uma filosofia não cristã, contra uma razão autosuficiente, incapaz de captar no mundo o signum, o rasto de Deus, contra uma razão que considera o mundo como uma realidade totalmente profana, com leis autónomas e autosuficientes. Em suma, Boaventura faz uma escolha consciente daquela tradição de pensamento que, vindo da Platão através de Agostinho e Anselmo, tinha sustentado a reflexão cristã que considera o mundo como um sistema de ordenadas repercussões, como um tecido de significados e relações alusivas a Deus uno e trino, e o homem como o inquieto peregrino do Absoluto tripessoal.

De que servirá uma filosofia que deixe de tornar evidente a presença de Deus no mundo e não leve a cabo a aspiração do homem à consciência e posse de Deus? O exercício da razão será salutar se nos permitir descobrir no mundo e em nós mesmos aqueles germes divinos que a teologia e a mística levam à completa maturação. O programa de Boaventura, que está no fundamento das suas opções filosóficas, é formado pelo ― quaerere Deum” que ―relucet” e ― latet”nas coisas, que se manifesta e oculta, e em volta do qual deve ser realizado o esforço da “meditatio”, segundo a tradição monástica, como prólogo da “consummatio” constituída pela visão beatífica. A ciência filosófica, que Boaventura busca e elabora a seu modo, é constituída, portanto, ― mediante outras ciências, pela teologia e pela mística, de que a filosofia é precisamente prólogo e instrumento.

A respeito de que filosofia é que Boaventura se mantém suspeitoso? À filoso- fia aristotélica, que, na versão averroísta, se evidenciava fortemente corrosiva face ao pensamento cristão. Boaventura tinha estudado Aristótelos na Faculdade das Artes, em que se inscrevera no ano de 1235, quando já a influência das obras do Estagirita se podia considerar consumada. Aqui, de facto, na Faculdade das Artes,

―Aristóteles estava bem presente com a Logica vetus e a Logica nova, a par de Porfírio, de Boécio e do Liber sex principiorum. Aristóteles estava igualmente presente com os livros I, III da Etica Nicomachea, com a Metafísica e os Libri naturales, que, mau grado a proibição de Gregório IX, eram ensinados em Paris (J. G. Bougerol).

Portanto, Boaventura tinha estudado Aristóteles e, consequentemente, conhecia sobretudo a versão averroísta. Porém, embora apreciasse as suas muitas contribuições para o estudo da natureza, rejeitou-lhe o espírito e os ornamentos gerais, porque alheios às vicissitudes e destino do cristão. Aristóteles é uma autoridade no campo da física, não porém no do saber filosófico, em que a autoridade cabe a Platão e, mais do que a ambos, a Agostinho: inter philosophos datus sit Platoni sermo sapientiae, Aristoteli vero sermo scientiae, uterque autem sermo, scilicet sapientiae et scientiae (…) datus sit Augustino, assim lemos em Christus unus omnium magister. Boaventura prefere, portanto, a tradição platónico-agostiniana à aristotélica, porque, para a primeira, a filosofia é não só abertura à Transcendência, a teorização da aspiração das coisas e do homem para Deus, mas também, na visão agostiniana, o desenvolvimento das implicações existenciais da fé; e, para a segunda, a aristotélica, pelo contrário, a filosofia é reflexão autónoma e, em mui- tos sentidos, fechada em si mesma e, portanto, desviante. A filosofia de inspiração aristotélica não podia dar apoio ao esforço de Boaventura de coligar estreitamente as componentes filosóficas com as teológicas, o elemento revelado com o racional. Ele andava em busca duma filosofia que alimentasse a sua religiosidade, o seu abraço constante com a teologia, o seu misticismo, o calor afectivo que faz de cada passo dado um acto de inteligência e um acto de amor. No quadro da tradição monástica e do espírito religioso emanado de Francisco de Assis, Boaventura, face às tradições filosóficas mais autorizadas, opta pela platónica e rejeita a aristotélica.

9.    Ainda São Boaventura: um cristão não pode pensar pondo entre parêntesis a própria fé

 ―As teses fundamentais de São Boaventura derivam de Santo Agostinho, considerado o mais iluminado intérprete da Escritura, onde reside a norma da verdade. De facto, Boaventura, (como já Agostinho, e diversamente de São Tomás), não admite uma natureza autónoma da sua raiz divina, e, portanto, nem sequer da razão natural, que só chega a conhecer graças à presença iluminante de Deus (V. Mathieu). Numa palavra, Boaventura toma a sério a Revelação. É a partir de Cristo que Boaventura vê e lê a história do homem e do universo inteiro. ― Uma vez que a alma tomou consciência desta impressionante verdade – comenta Gilson não só não a pode esquecer como em nada mais pode pensar senão em relação a essa mesma verdade; os seus conhecimentos, os seus sentimentos e as suas vontades encontram-se iluminados por uma luz trágica; o cristão vê um destino que se decide onde o aristotélico não vê senão uma curiosidade a satisfazer. Por seu lado, São Boaventura – prossegue Gilson – está profundamente possuído por este sentimento trágico (…). Com efeito, ele ― pensa porque, para ele, é um problema de vida ou de morte eterna o saber pensar noutras coisas; é subjugado pela angústia e ver que a obra criada por Deus, restaurada pelo seu sangue, é todos os dias ignorada e desprezada. O pensamento (para São Boaventura), diz ainda Gilson, ― deve ser, pois, um instrumento de salvação e nada mais; um instrumento que ponha Cristo no centro da nossa história como Ele está no centro da história uni- versal, jamais esquecendo que um cristão não pode pensar nada como pensaria se não fosse cristão. É assim que entendemos o conceito de filosofia cristã em Boa- ventura. A filosofia não começará sem Cristo, pois é Ele o seu fim último. De facto, ela encontra-se, portanto, perante esta alternativa: ver-se condenada sistematicamente ao erro ou ter em conta factos de que está doravante informada.

A filosofia de Boaventura é, por conseguinte, uma filosofia cristã. Boaventura é um cristão que filosofa e não um filósofo que também é cristão. Boaventuira é um místico. Vê o mundo com os olhos da fé. A razão é um instrumentum fidei; a razão lê o que a fé ilumina; a razão é uma gramática escrita com o alfabeto da fé. Tudo isto leva a compreender que a filosofia de São Boaventura e a de São Tomás

  • ao menos numa certa tradição interpretativa – são, de algum modo, e usando uma expressão da epistomologia contemporânea, incomensuráveis. Há, sem dúvida, pontos em comum: são duas filosofias cristãs e qualquer ameaça levantada contra a fé encontra-as unidas. ―Questiona-se o panteísmo? Um e outro ensinam a criação ex nihilo e afirmam uma distância infinita entre o ser por si e o ser partici Questiona-se o ontologismo? Ambos negam formalmente que Deus possa ser visto pelo pensamento neste mundo (…). Trata-se do fideísmo? Um e outro opõem-lhe o esforço mais completo da inteligência para provar Deus e interpretar os dados da fé. Trata-se do racionalismo? Um e outro coordenam os esforços da inteligência para o acto de fé e sustentam a influência benéfica do acto de fé sobre as operações da inteligência. Acordo profundo, indestrutível, proclamado pela tradição (…) e jamais contestado (É. Gilson). Mas este acordo, poderemos dizê-lo com os gestaltistas, encontra-se nas palavras, não na forma. Os dados são os mesmos, mas vistos numa luz diferente. Em 1879, Leão XIII falou de Tomás e Boaventura como de duae olivae et duo candelabra in domo Dei lucentia. Porém, o que importa relevar de imediato é que a luz dos dois candelabros ilumina diversamente as coisas. Na realidade, concordância não é identidade e é manifesto que estas duas doutrinas estão organizadas segundo duas preocupações diferentes; nunca vêem os mesmos problemas sob o mesmo ângulo. Trata-se de duas filoso- fias complementares: a fé em Deus é única e as tentativas humanas de nos situarmos na e pela fé são múltiplas. A fé, em suma — podíamos nós dizer – é liberta- dora: consente-nos e impõe-nos ser intérpretes criativos, na consciência de que as nossas tentativas são e persistem humanas, não absolutas e relativas à cultura da época, aos meios expressivos à disposição do intérprete.

10.  A relevância da grande tradição do pensamento franciscano

A nossa história, a história da intelectualidade cristã, está cheia de sofrimentos causados pela nossa demasiada presunção. A tentação integrista fez vítimas. Está presente na seguinte afirmação: a minha interpretação da fé é a fé; ou nesta outra: sem a minha filosofia, a fé não encontra fundamento, não passa duma fábula ilusória.

Portanto, sem o fundamento desta ou daquela filosofia, a fé não seria mais do que ―uma espécie de puro empenhamento emotivo, ―uma confabulação mais ou menos vaga e mítica. Por outras palavras, pretendeu-se confiar ―ao discurso breve e rigoroso do metafísico a sorte duma coisa tão grande como a fé religiosa, o sentido mesmo da vida, o próprio sentido de toda a civilização cristã.

Face a posições deste género, é caso para perguntar: quem temos nós como fundamento da fé, Cristo ou, por exemplo, Aristóteles? Em maio de 1996, o então cardeal Joseph Razinger fez em Guadalajara, no México, uma conferência por ocasião do encontro entre a Congregação da Doutrina da fé e os Presidentes das Comissões para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal da América Latina. Reproduzida sucessivamente, quer pelo Osservatore Romano (27 de outubro de 1966), quer pela Civiltà Cattolica (caderno 3515, IV, 1996), com o título de La fede e la teologia ai giorni nostri, asssim concluía o futuro Papa, referindo-se à temática das relações entre razão e fé: ―  Considero falido o racionalismo neo-escolástico na sua tentativa de querer reconstruir os Preambula Fidei com uma razão completamente independente da fé, com uma certeza puramente racional. Todas as outras tentativas que avancem por este mesmo caminho acabarão por obter os mesmos resultados. Neste ponto, razão tinha Karl Barth, ao rejeitar a filo- sofia como fundamento da fé, independentemente desta última: a nossa fé funda- mentar-se-ia então sobre mutáveis teorias filosóficas. No volume O sal da terra, o então cardeal Razinger escreve que ―a essência desta fé é que nós reconhecemos em Cristo o Filho de Deus vivo, encarnado e feito homem; Aquele por quem cremos em Deus, o Deus da Trindade, criador do céu e da terra (…). Dir-se-iam retiradas de São Boaventura.

Outra perspectiva, integrista, afirma: a minha interpretação da fé é a fé; ou ainda: só a minha filosofia é uma filosofia cristã. Uma história de incompreensões e de sofrimentos! E eis aí temos a Fides et ratio. Esta encíclica é, antes de mais, um diametral  distanciamento  dos  ―absolutos  terrenos   que  ousaram  eliminar  o espaço da fé, daquelas filosofias que quiseram ―apagar do rosto do homem os traços que revelam a sua semelhança com Deus, a fim de o levar progressivamente ou a uma vontade destrutiva de poder ou ao desespero da solidão. Simultaneamente, a Fidei et ratio é uma defesa da legitimidade, sensatez, racionalidade e humanidade da pergunta metafísica. A filosofia é configurada como uma das mais nobres tarefas da humanidade, pois é exactamente a filosofia que mantém vivas as perguntas de fundo que caracterizam o percurso da existência humana: quem sou, donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? Que será de nós depois desta vida? ― São estas perguntas –  dizia o Santo Padre – que têm a sua fonte comum na exigência de sentido que foi sempre uma premência no coração do homem: é da resposta a estas perguntas que depende efectivamente a orientação a imprimir à existência . Aqui, a encíclica, embora insistindo nos poderes da razão humana, salienta-lhe repetidas vezes os limites e afirma com toda a clareza que não é dela que nos vem a salvação. A razão humana levanta uma pergunta – a pergunta metafísica – mas só Cristo pode oferecer a resposta satisfatória. Pergunta-se e pergunta o Santo Padre: ―Onde poderia o homem encontrar resposta a interrogações dramáticas como as da dor, do sofrimento do inocente e da morte, senão na luz que dimana do mistério da paixão, da morte e ressurreição de Cristo?

― A razão não pode esvaziar o mistério do amor que a Cruz representa, ao

passo que a Cruz pode dar à razão a resposta última que ela busca.

― A fé não é, como tal, uma filosofia (…). Como virtude teologal, (a fé) liberta a razão da presunção, tentação típica a que os filósofos se encontram facilmente sujeitos.

― O homem encontra-se num caminho de busca humanamente interminável: busca da verdade e busca duma pessoa a quem se confiar. A fé cristã vai ao seu encontro oferecendo-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca.

― O conhecimento que ela (a Igreja) propõe ao homem, não lhe vem das suas próprias especulações, por mais sublimes que sejam, mas de ter acolhido na fé a palavra de Deus.

Portanto, é a Cruz que pode dar à razão a última resposta que procura. Por outro lado: ―Nenhuma forma histórica da filosofia pode legitimamente pretender abraçar a totalidade da verdade, nem propor-se como explicação plena do ser humano, do mundo e da relação do homem com Deus.

― O facto de a missão evangelizadora ter encontrado primeiramente no seu caminho a filosofia grega, não constitui indicação para que se feche a outras aproximações.

― A Igreja não propõe uma filosofia sua, nem consagra uma filosofia própria

com exclusão de outras.

― Os caminhos para alcançar a verdade são múltiplos; todavia, como a verdade cristã tem um valor salvífico, qualquer desses caminhos pode ser percorrido, desde que leve à meta final, ou seja, à Revelação de Jesus Cristo.

Nesta perspectiva, compreende-se melhor a relevância, a capacidade de resposta aos urgentes problemas actuais deste caminho – que é, de resto, um traço característico da identidade da Europa – e é constituído pela grande tradição do pensamento franciscano.

Traduziu Fr. José David Antunes

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A REGRA DOS FRADES MENORES

Forma de vida em tensão entre Memória e Profecia

por D. Felice Acrocca1

 

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1 O autor, sacerdote diocesano, especialista em história e espiritualidade franciscana, pronunciou esta conferência durante o Capítulo Geral dos Frades Menores, em Assis, setembro de 2006.

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Francisco e seus irmãos tentaram resumir num projecto de vida a intuição que gradualmente foi amadurecendo da opção de ―viver segundo a forma do Santo Evangelho: o projecto primitivo apresentado a Inocêncio III, que Francisco ―fez escrever em poucas e simples palavras (T 15), enriqueceu-se progressivamente através dos Capítulos anuais, onde os frades, aproveitando os conselhos de especialistas, formulavam e promulgavam as suas santas leis, confirmados depois pelo Papa (FF1 1387). Assim se procedeu até se alcançar a formulação daquele texto que, sem nunca obter a aprovação papal, chegou até nós como o nome de Regra não Bulada (2R). Ao longo da caminhada, não esmoreceu o estilo comunitário, até que a nova família religiosa (desde 1220 que os documentos papais denominam de Ordo a religio minorítica) consegue escrever um texto normativo com valor definitivo. A Carta a um Ministro é testemunho evidente deste caminho comum, que submetia a uma revisão atenta até os textos propostos pelo próprio Francisco. Tratou-se sem dúvida de um caminho difícil: os silêncios e as reticências de algumas fontes revelam sinais da incomodidade evidente de alguns biógrafos, assim como outros documentos revelam expressamente as tensões existentes entre Francisco e os Ministros, sem esquecer que fontes para além de qualquer a sus- peita, falam do desaparecimento, em determinado momento, de um rascunho do texto tão complexo. (LM IV, 11, 8).

Apesar de todas as dificuldades, chega-se à redacção final, que depois da confirmação por Honório III a 29 de novembro de 1223, constitui hoje a referência essencial de toda a família dos menores: um texto que teve a colaboração de várias pessoas com distintas formações e sensibilidades, mas que todavia leva impressa a arca inegável do próprio Francisco. É um texto ― fechado, que de certa maneira explicava de forma definitiva – e, por assim dizer, institucionalizava – o carisma, dando estabilidade a algumas instituições e opções de fundo, concluindo aquele processo que até ao momento tinha sido progressivamente enriquecido e actualizado num processo normativo ― aberto a desenvolvimentos posteriores. Mudanças rápidas e contínuas, além duma tensão mal contida, fizeram com que Francisco se sentisse obrigado a intervir já nos últimos anos de sua vida, ditando um texto que tinha um objectivo preciso: o de impulsionar os frades a observar ―mais catolicamente a Regra prometida ao Senhor (T 34).

Francisco estava bem consciente de que o seu testamento não tinha a mesmo força jurídica da regra. Precisamente por isso, insistia na primeira parte do documento na inspiração divina que o havia guiado por um caminho que, ao menos num primeiro momento, não tinha desejado percorrer. Mas porque tinha sido o Senhor que lhe revelou aquela forma de vida agora codificada definitivamente na Regra, esta não podia ser distorcida. A Regra era autêntica e verdadeira porque foi inspirada por Deus e foi confirmada de uma vez para sempre pela a Igreja que lhe deu o seu aval.

O Escrito mostra uma tensão sem solução. Por um lado Francisco distingue expressamente o Testamento da Regra: os Frades não devem fazer deduções e defender este escrito como outra regra, porque este era uma ― recordação, aviso e admoestação e o meu testamento (T 34). Por outro lado, colo- cava os dois escritos no mesmo plano: ― o  ministro  geral  e  todos  os  outros ministros e custódios  estavam obrigados, por obediência a não acrescentar nem cortar nada  do Testamento, mas antes a ― tê-lo sempre junto à Regra e ambos deviam ser lidos em todos os capítulos (T 35-37). E mesmo contra a vontade de alguns, enquanto confirmava com autoridade alguma modalidade da experiência primitiva considerada então em perigo, Francisco   apropriava – se de um estilo que havia caracterizado a sua família religiosa até 1223 (uma ― tentação que já tinha  assomado  à  sua  mente:  cf. Mem 193),  introduzindo novas  obrigações  como  a  proibição –  absolutamente  firme –  de  ―não  pedir algum privilégio à Cúria Romana  (T 25), e a proibição – também muito precisa – de introduzir ―explicações da Regra , para além do Testamento (T 38). Para ele o problema da autenticidade da Regra e da sua confirmação era assunto encerrado. Mas, ao mesmo tempo, acabava por colocar junto à Regra, novas prescrições que antes não estavam ali contidas. As tensões futuras surgiram do contraste interior, já de alguma forma presente no mesmo Francisco (não é por acaso que o Testamento venha a ter um papel determinante em muitos movimentos da reforma): isto explica em grande parte a singularidade da história – e o inegável fascínio – deste carisma religioso, como do peso enorme que nele exerceu a memória do Fundador.

Os pontífices perante a Regra: Gregório IX e Nicolau III

 Contrariamente às intenções de Francisco, a história seguia noutra direcção. O rápido crescimento da nova família religiosa suscitava muitos problemas aos irmãos: já entre 1210 e 1220, se fizeram tentativas em várias ocasiões, para completar o texto do código de vida: as fraternidades que se multiplicavam, sobretudo por causa das novas campanhas missionárias; a aproximação, não só geográfica, ao mundo universitário; os campo de acção que a Sé Apostólica entregava aos Menores (um exemplo é a Carta de canonização de  Francisco,  Mira circa nos),  tornavam  urgente  uma  ―adaptação da regra às condições que se alteravam gradualmente, permitindo assim aos irmãos uma fidelidade ―possível  às intenções do fundador.

As dificuldades surgidas e a diversidade de opiniões que apareciam, tornaram necessária uma intervenção externa em 1230. Não sabemos se a decisão dos capitulares foi unânime. Mas é certo que Gregório IX interveio a pedido dos Menores para esclarecer ― alguns  pontos  duvidosos  e  obscuros  e algumas dificuldades de compreensão  (Quo elongati). Como no Testamento Francisco proibia expressamente a seus irmãos que  se  inserissem ― explicações à Regra , o pontífice foi convidado a actuar devido ao conhecimento mais ―perfeito  que possuía da intentio de Francisco e por ter participado na redacção da Regra. A Quo elongati constitui um ponto a partir da qual não se pode voltar mais atrás. Além de algumas clarificações acerca dos aspectos específicos da Regra bulada, Gregório IX declarou que o Testamento  não tinha valor vinculativo para os irmãos, e que eles mesmos eram obrigados a observar  unicamente  aqueles  conselhos  do  Evangelho  ―expressos  em  forma de mandato ou proibição da mesma Regra . Duas questões perenes de actualidade na história do movimento franciscano!

Nos cinquenta anos que se seguiram à morte de Francisco, a Ordem parecia orientada para procurar uma legalização da Regra, sobretudo em virtude de considerações internas, o que quer dizer que se esforçaram por compreender a vontade do Fundador. Ao contrário de Gregório IX, a Ordinem vestrum (1245) de Inocêncio IV, documento pedido pelos mesmos frades – é o procedimento que esteve na origem do comentário à Regra dos quatro Mestres, nos primeiros quarenta anos, que conduzia á mesma conclusão – não fará nenhuma alusão à intentio Francisci, expressão que será retomada só por Nicolau III (Exit qui seminat, 1279). Não nos deve surpreender que a carta de Inicêncio IV fosse logo recebida com relutância pelos Menores, a tal ponto, que poucos anos depois se decidiu suspender a sua aplicação naqueles pontos em que se afastava da Quo elongati. Também nos comentários seguintes dos pontífices, este documento de Incêncio IV raramente foi considerado.

Num primeiro momento o recurso a uma legalização baseada em considerações externas, as intervenções pontifícias, foi ilizado sobretudo ad extra, mormente contra o clero secular (exemplo disso é a Expositio super Regulam atribuída a S. Boaventura, mas mais próximo do ambiente influenciado por João Peckam). Não devemos esquecer, com efeito, que a disputa com o clero secular, muitas vezes pôs em perigo a existência da Ordem até ao Concílio de Lyon (1274). Tal disputa deixou sinais evidentes na produção hagiográfica, e, como era lógico prever, favoreceu também o aprofunda –  mento teórico dos frades em relação à Regra. Naqueles anos delicados e difíceis (1255-1279), os Menores elaboraram progressivamente a doutrina da altíssima pobreza como graça de perfeição adquirindo a consciência de abraçar um estado de vida mais perfeito que outros: uma pobreza vivida real –  mente, que via os Menores desejosos de colocar-se à margem da escala social.  No espaço de alguns decénios chegou-se a uma ― pobreza pensada, que fez com que se afirmasse a superioridade de um estado de vida em relação a outros grupos eclesiais. A Exit qui seminat, acolhendo ideias funda- mentais do magistério de Boaventura, acabou por aprovar este estado de coisas, declarando que a renuncia à propriedade, tanto individual como comunitária, era meritória e santa, uma vez que Cristo assim ensinou e confirmou com o seu exemplo.

A grande disputa entre Comunidade e Espirituais

A vitória ad extra não significou o fim das tensões, uma vez que  cresceu o debate ad intra. A Ordem Franciscana já era a mais difundida da cristandade e a precariedade das origens era só uma pálida recordação: como permanecer fiéis aos ideais das origens, num ambiente radicalmente diferente? Desde os fins de 1270, a discussão incendiava-se de forma intensa, favorecida sobretudo por algumas intervenções de Pedro João de Olivi. Este afirmava que o ― uso pobre (usus pauper)  era  parte integrante  do  voto franciscano.

Uma vez que, entre 1200 e 1300, o grande debate se referia à Regra e à sua observância, para os Espirituais transformou-se numa exigência vital compreender o significado daquele texto – ao mesmo tempo documento legislativo e razão de vida – e sobretudo a intentio do Fundador. Assim escreveu Pedro João de Olivi no Prólogo do seu comentário à Regra bulada.  Se para os representantes da comunidade a interpretação autêntica da Regra residia na declaração papal, tanto que Raimundo de Fronsac – que escreveu uns 30 anos depois da redacção do comentário de Olivi – considerava como ― supersticioso alguém pretender ter um conhecimento melhor da intentio de Francisco do que aquela ali exposta, para os Espirituais, Ubertino e Clareno, só as palavras e os actos do Assisiense podiam garantir uma interpretação segura da intenção e da sua vontade suprema.

Com Olivi o debate mantém-se sobretudo a nível teórico. Alguns decénios mais tarde, quando terminou a polémica referente à fidelidade verdadeira ou presumida dos irmãos ao próprio ideal religioso, Ubertino e Clareno sentiram necessidade de abrir uma confrontação contínua entre a vida da Ordem tal como acontecia realmente e o ensinamento e exemplo de Francisco. Tal modo de proceder está patente em escritos polémicos de Ubertino durante a disputa que teve lugar por altura do Concílio de Viena.

Se na resposta ao memorial de Raimundo Gaufridi a comunidade trata de confirmar que a substância do voto franciscano consistia em viver sine próprio – isto é, na renúncia a toda a possessão ou domínio, e que por isso é mais meritório que o usus pauper – m três sucessivas intervenções, Ubertino procurou demonstrar precisamente que o usus pauper estava em plena conformidade com a intentio do fundador. As suas observações concentraram-se essencialmente sobre a observância da Regra: equiparando-a ao Evangelho, Francisco mesmo a tornou intangível (ideia confirmada no Espelho de Perfeição (à volta de 1318) e no Comentário à Regra de Clareno (1321-1322). Uma vez que os frades se obrigavam a observar a Regra e ela    não era outra coisa que o Evangelho de Cristo, eles se comprometiam a observar todo o Evangelho sob a forma de voto e não somente os conselhos como forma de preceitos. Para os Espirituais, sobretudo os italianos, o Testamento assumiu também um carácter sagrado, formando uma só coisa com a Regra. Separar os dois textos queria dizer não os compreender, uma vez que

  • escreveu Clareno com audácia – a Regra sem o Testamento teria sido privada de um elemento essencial, como a coroa de estrelas sem a cabeça da mulher, ou como uma boa acção sem recta intenção, limitando-nos só a algumas das comparações mencionadas no Epílogo do Comentário à Regra.

Preceitos e conselhos: a origem de uma longa história

 Nos anos da grande disputa entre a Comunidade e os Espirituais, Clemente V nomeou uma comissão de expertos, estranhos à Ordem, para examinarem os documentos produzidos pelas duas partes em causa. A comissão elaborou uma série de prescrições que deviam comprometer sub gravi os Menores. O Papa recebeu e considerou o resultado desse trabalho e, a 6 de maio de 1312, publicou a carta Exivi de paradiso, que se propunha encerrar a discussão com a Quo elongati (1230). Segundo o Papa Gregório, os frades estavam obrigados a observar unicamente aqueles conselhos do Evangelho

― expressos em termos de imposição e proibição na mesma Regra. Para Ino – cêncio IV estavam obrigados àqueles conselhos ―expressos de forma categórica ou obrigatória (preceptorie vel inhibitorie), enquanto que Nicolau III falava de conselhos ― expressos de forma categórica e obrigatória, ou também palavras equivalentes (preceptorie vel inhibitorie vel sul verbis aequipol- lentibus. Por seu lado, Clemente V esclareceu que os frades estavam obri- gados não somente à observância dos três votos, mas também de tudo o que a eles se referia, e que está exposto na mesma regra (non soluta ad tria vota nude et absolute… sed etiam tenentur ad omnia ea imprenda quae sunt perti- nentia ad haec tria, quae regula ipsa ponit; Bartolomeo resume esta questão em De conformitate IV. Clemente V enumerava 24 preceitos que, até ao século XX, foram ponto de referência obrigatória para todos os comentadores. É fácil de perceber como a partir daqui tenha surgido uma casuística infinita.

Dos princípios da observância até à origem dos Capuchinhos

 A partir dali, em pouco tempo, durante o pontificado de João XXII, iniciou-se uma crise sem precedentes: o Papa  tentou,  desde  o  primeiro  momento, desmantelar os postulados teóricos da Exiit qui seminat, até conseguir, depois de promover uma consulta ampla sobre o tema, declarar herética a tese de que Cristo e os apóstolos não tinham possuído nada (Cum inter nonnulos, 1323); surgiu dali uma forte polémica  acusatória,  no  decurso  da qual os teólogos próximos do Ministro Geral, Miguel da Cesena, que durante este tempo se refugiaram com ele na corte de Luís da Baviera, declararam herético o Papa por causa das teses que defendia.

A peste europeia que em 1348 dizimou a população da Europa e esvaziou os conventos, acabou efectivamente por desenhar um outro cenário. Enquanto ardiam os fogos acendidos em várias partes para extinguir a heresia dos Fraticelli, vieram ao de cima as palavras dos idealistas e as aspirações dos Espirituais.

Clemente VI, em 1350, autorizou que doze frades ocupassem quatro eremitérios na Úmbria (Os Carceri, Monteluco, a Ermida de Portaria e Giano), que subtraiu à jurisdição dos superiores, confiando ao guardião dos Carceri, Gentile de Espoleto, que ali se pudesse observar a Regra  simpliciter, segundo  a pureza primitiva (BF VI, p. 246). Assistimos também, durante a metade do século XIV e todo o século XV, a tentativas várias de reformas que levaram progressivamente à afirmação do movimento Observante, que num primeiro momento fez opção pela vida eremítica, para se transformar de seguida num movimento cada vez mais inserido na sociedade. Estes movimentos de reforma surgiram não só em Itália e França, onde durante mais tempo dominaram os Espirituais, mas também na Península Ibérica, que permaneceu em grande parte imune a esta influência, e na qual os ideais reformadores desembocaram em três direcções: eremitérios independentes (sobretudo na Província de Santiago, a mais distante do resto da Europa), a reforma villacreciana e a Observância regular.

Os Observantes conquistaram progressivamente a sua autonomia e obtiveram uma série impressionante de privilégios no pontificado de Eugénio IV; os Conventuais tentaram reagir a este êxito imediato, e durante o pontificado de Sixto IV estiveram perto de mudar toda a situação. Graças também ao apoio de príncipes e soberanos, a Observância conseguiu manter o status quo, e desde então foram os Conventuais que tiveram que organizar a sua defesa. Permanecia, de qualquer forma uma difusa insatisfação: uma leitura atente da Franceschina mostra que o seu autor, o observante Giacomo Oddi, nutria uma verdadeira nostalgia por aqueles tempos, cronologicamente longínquos, do início do movimento reformador. Como testemunham muitas cartas pontifícias, a chamada insistente à observância da Regra integral persistia tenazmente na área programática dos grupos da reforma. Os mesmo Observantes sentiram-se obrigados a conter o impulso centrífugo de quantos desejaram separar-se do movimento para viver os mesmos programas que estiveram na sua origem e pelos quais os seus promotores se tinham distinguido da Comunidade da Ordem. Nesta circunstância, a linha de comporta- mento dos Observantes não foi distinta daquela que a Comunidade tivera para com os Espirituais, e num segundo momento, com eles mesmos.

A Ite vos, bula designada de ―bula de união, com a qual Leão X aprovou definitivamente a separação da Ordem, não pôs fim ao estado de insatisfação. Ainda em 1526, com o breve Ex parte vestra, o Cardeal Lourenço Pucci concedia a Mateus Bascio, Luíz e Rafael de Fossombrone a liberdade de poder levar vida eremítica e observar a Regra tanto quanto lhe concedia a humana fragilidade (estamos perante uma forte reafirmação da posição rigorista). A área programática regressa na carta Religionis zelus, de  Clemente VII, dirigida aos mesmos frades, marcando a acta de nascimento da família capuchinha, dada pelo pontífice só para três frades (o que tornava legítimo perguntar-se por quê nunca foi possível aos Espirituais obter o que depois foi concedido aos Observantes e Capuchinhos).

A Regra e a sua pureza: proposta do eremitério

Os primeiros capuchinhos, sobretudo no tempo em que estiveram sob a orientação de Luís de Fossombrone, acentuaram o aspecto eremítico. Foi desde o eremitério que partiu também a proposta severa e exigente de Frei Paoluccio Trinci, a favor do eremitério. O eremitério foi, num primeiro momento, a opção de todo o movimento Observante. Mas este sofreu uma viragem significativa entre 1412 e 1413, quando Bernardino deixou o eremitério de Colombaio, em Sena, e se lançou com todas as forças na pregação itinerante. Toda a Itália setentrional foi percorrida e conquistada pela personalidade fascinante deste franciscano de palavras iluminadas. Uma inserção mais intensa no tecido urbano forçou necessariamente a Observância a integrar-se cada vez mais na vida social. Como reacção a tal processo, perante a afluência de vocações que obrigavam à construção de novos e maiores conventos nas cidades, mais uma vez voltou um forte convite  ao  eremitério,  a uma vida pobre feita de silêncio e de oração. Já em 1460 João Brugman, num opúsculo polémico com o significativo título (Speculum imperfeccionis Fra- trum Minorum), repreendeu os seus irmãos da Observância por terem abandonado a vida eremítica, dando origem a uma deplorável decadência em relação à opção de vida primitiva. Nesta linha, encontramos entre o século X V e XVI muitos movimentos de reforma, sobretudo em Itália e Espanha, que propugnaram por um regresso ao espírito primitivo através da opção pelo eremitério.

Para ir ao encontro destes pedidos, que se tornaram cada vez mais insistentes, em 1523, o Ministro Geral Francisco Quiñones promulgava os estatutos para os eremitérios presentes no território espanhol. Pouco tempo depois, em 1526, os mesmos foram promulgados em Itália. Estes transformaram-se em ponto de referência para todos os estatutos posteriores. A 22 de Novembro de 1679, Inocêncio XI promulgou a bula Militantis Ecclesiae, com a qual aprovava as actas do Capítulo Geral dos Observantes, realizado em Roma, no convento de Araceli, em 1676. No prólogo destas disposições pontifícias era dito expressamente:  ―Ordena-se que em cada província desta Observância sejam instituídos três ou quatro conventos de recolecção de primeiro e segundo noviciado, que sejam ao mesmo tempo lugares de tranquilidade espiritual e seminários de perfeição para toda a Província.

Não é por orgulho cívico que recordo a Tomás de Cori, conterrâneo meu, mas porque foi animador e verdadeiro fundador do Retiro de Civitella (hoje Bellegra) e se mostrou em plena sintonia com o franciscanismo primitivo, optando decididamente por uma vida mista de contemplação e aposto- lado, com um sistema muito diferente daquele que até então dominou as casas de recolecção e de retiro. A sua intuição foi de grande fecundidade, a tal ponto, que as mudanças que elaborou para o Retirode ivitella, aprovados pelo Ministro provincial em 1706 e alargados a todos os conventos de retiro da província romana, foram depois aplicados a toda a Ordem pelos Ministros Gerais Clemente de Palermo e Pascoal de Varese, em 1759 e 1774.

O predomínio da perspectiva jurídica

 Com a finalidade de conservar a própria família religiosa ―na espiritual observância da Regra evangélica e seráfica, nas Constituições de Roma – St. Eufémia (1536), os primeiros capuchinhos decidiram ― ordenar alguns estatutos por causa de obstáculos à dita Regra com o fim de se defender de todas as debilidades (relaxazione) contrárias ao fervorosíssimo e seráfico zelo do pai S. Francisco (Prólogo). Consciente que foi a vontade de Cristo e de Francisco que a Regra se deveria observar ―simplesmente, ad literam, sem glosa , a fim de a respeitar mais pura, santa e espiritualmente , dec idiram eles  renunciar  a  ―toda  a  glosa   e  exposição  carnal,  inútil,  nociva  e  debilita – dora  (relaxative),  aceitando  como  ―comentário  vivo ― as  declarações  dos Sumos Pontífices e a santíssima vida, doutrina e exemplos do Pai S. Francisco (Fonti Cappucine (FC), 5); além disso decidiram observar o Testamento de Francisco, julgando-o ―glosa espiritual e exposição da Regra (ibi- dem, 6).

Não obstante tal petição de princípio, a aproximação jurídica (ou melhor de preceitos) em relação à Regra acabou por triunfar por todo  o  lado  na  época moderna, mesmo no âmbito capuchinho. Os comentários dos Capuchinhos de fins de 1500 e dos primeiros decénios de 1600, constituem uma prova evidente da vitória deste modo de aproximação em relação ao código de vida da família franciscana. A enumeração precisa dos preceitos que, segundo a Exivit de paradiso, obrigam sub gravi aos frades constitui, como   se disse, um ponto desde donde não se regressou e que influenciará os comentadores futuros. A teologia da vida religiosa imposta na época pós-tridentina (Suarez) e que apresentava a profissão religiosa como um contrato, contribuirá de forma relevante para fazer crescer o problema da obrigatoriedade da regra, fonte perene de inquietações renovadas. Multiplicam-se os comentários, tornando cada vez mais difícil a leitura para quantos estavam desprovidos de uma adequada formação jurídica.

Nesta selva de comentários, distingue-se um curioso Tratado sobre el amor evangélico, provavelmente dos inícios de 1500, descoberto incompleto em um manuscrito de Assis, que reúne outros documentos relacionados com a Regra Franciscana e publicado há alguns anos por Costanzo Cagnoni nas Fontes Capuccine (recebi recentemente um segundo manuscrito descoberto na Biblioteca Vaticana, que mesmo incompleto, permite ter uma visão articulada da obra). Na explicação do texto não se aplicam comentadores antigos, nem os pronunciamentos papais. A palavra de Deus revela-se como o único fundamento para a compreensão da norma de vida dos Menores.

Alguns autores, caso de Hilário de Paris, insatisfeitos com este estado de coisas, tentaram voltar à doutrina escolástica, terminando a sua obra por ser colocada no Índice (cf. ETZI, p. 125-127). Como escrevia Kayetan Esser, ―não se separaram deste modelo nem sequer quando as estruturas científicas e sociais do mundo secular, assim como a vida interna e a acção da Igreja, já tinham mudado havia tempos. As explicações da Regra colocavam questões deste tipo (e os noviços aprendiam a discutir com todos os subsídios da casuística): Que significa cavalgar? E isto muito depois de os frades menores viajarem de comboio, de carro e de avião. Construíam-se silogismos sobre a proibição da Regra para usar dinheiro, quando já cada frade da Ordem, como os pobres do mundo, de facto, usavam dinheiro e deviam usá-lo  (ETZI,  p. 127). Há poucas semanas o P. Servus Gieben, coetâneo de Thaddée Matura, com o qual discutia acerca desta questão, confirmou-me que as coisas no âmbito capuchinho, no que ao noviciado dizia respeito, se encontravam precisamente neste mesmo ponto. A interpretação jurídica da regra tinha um peso muito maior que os ensinamentos de Francisco. Enquanto a segunda guerra mundial punha em causa tantas certezas, os noviciados das diferentes observâncias continuavam com as mesmas posições descritas por Esser. E tudo isto apesar de no Capítulo de 1915, Holzapfel tivesse formulado um pedido ao Ministro Geral no sentido de dirigir uma súplica formal á Sé Apostólica, para que o Papa fizesse, de alguma forma, tabula rasa de toda a documentação tornada fastidiosa e nociva para o verdadeiro  progresso  da  vida religiosa. Teve que se esperar pelo Concílio Vaticano II para que s e iniciasse um redescobrimento geral do carisma. Em grande parte isso foi preparado por estudiosos que desde há muito produziram notáveis estudos nesse sentido: consulte-se o trabalho de F. Uribe na Collectanea Franciscana 79 (2006), p. 119-160, segundo as indicações formuladas no Decreto Perfectae Caritatis.

O coração da “Regra e vida”

Como se apresenta hoje à nossa compreensão este texto vital? Ele oferece indicações preciosas para um estilo de vida autenticamente fiel ao espírito do Fundador e às mudanças das condições dos tempos. É necessário para tal afirmar, contra uma sub-reptícia tentação, que a Regra bulada não obstante ter sofrido a influência de várias mãos na sua redacção, reflecte o pensamento autêntico de Francisco. Não compartilho, por conseguinte a opinião de muitos que pretendem, mesmo que veladamente, cavar um fosso entre este texto e a Regra não bulada. A voz directa do santo de Assis aparece não só nos muitos textos em primeira pessoa (Cf. 2, 17; 3, 10; 4, 11; 9, 3, 10, 3; 1 1, 1; 12, 3), mas também noutras passagens facilmente identificáveis: frases que, mais do que outras, revelam uma surpreendente harmonia não só com correspondentes análogos da Regra não bulada, mas também com outros escritos de Francisco.

A Regra apresenta-se então como vida (Cf. 1, 1; 2, 1; 2, 17) da fraternidade (família aparece quatro vezes com o termo fraternitas, duas vezes com o termo religio, uma vez somente com o termo ordo), uma vida que se concretiza num programa de observância da pobreza e a humildade e o Evangelho de Jesus Cristo (Cf. 1, 1; 6, 2; 12, 4), em comunhão com a Igreja e em obediência a ela (Cf. 1, 1; 12, 4). Centro e coração deste código de vida, parece-me, a meu modo de ver, o capítulo 6 que, sobretudo em 4-6, apresenta também um género literário diverso. Tal como o capítulo sexto da Regra de Santa Clara distingue-se do resto pelo tom autobiográfico. Por isso, também, por um género literário diferente. Da mesma forma se distingue este capítulo na regra minorítica: trata-se, com efeito, de uma exortação em forma directa, dirigida aos irmãos pelo próprio Francisco. O capítulo sintetiza a essência da vida peregrina e mendicante, feliz por possuir unicamente o Senhor Jesus Cristo, e de seguir as suas pegadas em pobreza e humildade (1-3 fala da menoridade), numa vida em comunidade de partilha de vida num serviço caritativo recíproco (7-9 fala da fraternidade). A exortação de Francisco (4-6) une estes dois textos, sintetizando a essência da experiência franciscana.

Uma existência humilde e submissa (Cf. 3, 10-11. 13-14) que não pode e não quer julgar a ninguém. A humildade, efectivamente, deve marcar o estilo de vida dos Menores (Cf. 3, 11; 5, 4; 6, 1; 10, 1; XII; 4). No seu Testamento, Francisco concretizará que os irmãos devem adoptar um estilo humilde também no trabalho pastoral (6-7). Uma vez que a humildade distingue a opção eucarística de Cristo /Cf. Ex 1, 16-18; CO 26-29), a vida dos irmãos deve fazer-se   eucaristia, deve assumir  as  características de humildade e de pobreza, que caracterizaram a existência e as opções de Cristo.

A lição da história

O esboço que foi traçado até agora coloca-nos perante uma história cheia de contrastes, fruto de uma ―herança difícil: uma tensão que tem a sua origem na pessoa e na experiência do próprio Francisco. Para que a história se transforme verdadeiramente em magistra vitae, é necessário que se aprenda a lição.

Em tensão permanente: O que nos ensina a história franciscana? Ensina sobretudo que as tensões fazem parte dela. Podemos dizer que estão inscritas no seu ADN. Mas a história mostra também que as tensões centrífugas vêm acompanhadas de uma sã elasticidade, capaz de acolher propostas que se encontram fora dos esquemas e opções já consolidadas, na condição que não serem favorecidos os exploradores solitários e que as orientações e estratégias sejam partilhadas nos lugares próprios do discernimento comunitário.

Ortodoxia e Ortopraxia: Oito séculos de vida ensinam também que não basta a ortodoxia para conservar a unidade, quando se debilita a ortopraxia. Como referência é exemplar o acolhimento dado pelos Espirituais à Exivit de paradiso, carta de Clemente V, que acolhia as críticas de Ubertino ao estado   de desleixo que estava difundido na Ordem, mas contrariava as expectativas dos Espirituais em relação a alguns aspectos essenciais. Desde um ponto de vista teórico, esta foi um fracasso para eles, apesar de Clareno a considerar a mais próxima da intenção do Fundador (Liber chronicarum VI, 258). Um compromisso maior na repressão dos abusos (e é bom dizer que as acusações repetidas e as circunstâncias de Ubertino nunca foram desmentidas pela comunidade), teriam resolvido muitas coisas, naquele momento como agora.

Eremitério-cidade: Apesar de estar sempre presente na história da Ordem, revelou-se depois a tensão entre eremitério e cidade. Francisco e seus companheiros optaram por uma ―alternância (Merlo) eremitério-cidade no mesmo dia, tal como tinha observado Tiago de Vtry (FF1 1388-1392): os irmãos trabalham na cidade e depois retiram-se, de noite, para lugares solitários. Passados poucos anos a vida nos eremitérios transformou-se numa possibilidade permanente (Cf.  1R 17; RE), e com o passar dos tempos, acabou por se transformar em alternativa ao franciscanismo urbano (de alternância passou a alternativa). Foi no eremitério que tiveram início reformas que exerceram um peso decisivo no desenvolvimento da família franciscana. A história mostra que as reformas conheceram um crescimento, não só numérico, quando deixaram o eremitério e se dirigiram às cidades. Observantes e Capuchinhos mostram-no.

Autoconsciência institucional: sacerdotes e não-sacerdotes. A pobreza foi a palavra chave causadora de múltiplas explosões. Podia tratar-se de uma pobreza pensada, defendendo a pretensa superioridade da Ordem, ou a busca de uma pobreza vivida em nome da fidelidade ao espírito original da Ordem. A tensão entre as duas almas do franciscanismo manifestou-se bem cedo, ainda em vida de Francisco. Mas não se tratou de uma luta entre rigoristas e desleixados, como em tempo afirmou Clareno e como, em tempos mais próximos de nós, foi considerado por Sabatier. Na realidade, desde o princípio, as partes em conflito revelaram uma consciência diferente em relação à própria vocação e á missão da Ordem. Uma parte mostrou-se tenazmente ligada à memória das origens, defendendo um testemunho silencioso, baseado numa vida com os pobres, no trabalho manual, anunciando a penitência. Outra parte colocou-se resolutamente a favor duma inserção da família franciscana na actividade pastoral, ao serviço e em prol da reforma da Igreja. A parte laical da Ordem (que espaço podia ter um irmão leigo na pastoral?) inclinou-se por uma continuidade com o modelo das origens, enquanto a parte sacerdotal se revelou mais orientada para a opção pastoral.

Gregório IX contribui de maneira decisiva para a vitória do modelo pastoral. Quando um sacerdote celebra missa, confessa, prega ou ensina, insere-se activamente na vida política da cidade e terá muita mais dificuldade em estar com os leprosos ou num hospital cuidando os doentes. Foram, então, sobretudo os irmãos leigos, para os quais era difícil o acesso a actividades pastorais, os que mantiveram a fé (pelo menos em certos casos) na memória primitiva da Ordem. Tais chaves de leitura, não se podem, obvia – mente, absolutizar. Basta pensar na experiência de António de Lisboa, que depois duma intensa actividade de pregação, procurou a quietude de Camposampiero, onde viveu em condições muito semelhantes às que foram recomendadas na Regra dos Eremitérios. Da mesma maneira também um personagem como Elias, que não foi sacerdote, mas certamente um homem de grande capacidade e energia, dinâmico, consagrado mais à vida activa e ao governo do que à solidão e à tranquilidade, viveu também – de acordo com o testemunho de Tomás Eccleston – um período de tempo num eremitério, entre 1230 e 1232.

A história sucessiva constatou como os religiosos, leigos e sacerdotes, actuaram de acordo com uma nítida divisão de tarefas: não só no trabalho manual, mas também na evangelização itinerante (uma olhadela, ainda que rápida nas actas dos processos de canonização é o suficiente para nos convencer), elemento fundamental da experiência primitiva, que se manteve graças aos religiosos não sacerdotes. Discute-se muito hoje – pelo menos no ocidente – acerca dos irmãos não sacerdotes e sobre a natureza da Ordem. De qualquer forma, enquanto o trabalho litúrgico-pastoral continue a absorver quase todas as energias, todo este discurso estará destinado ao fracasso.

Traduziu Fr. José António Correia Pereira

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A SENHORA DA CONCEIÇÃO

NA CONSOLIDAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL

 por Fr. Henrique Pinto Rema1

 

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1 Escreveu Henrique Pinto Rema, OFM, para serão comemorativo da Restauração de Portugal, Palácio Beau Séjour (Estrada de Benfica, nº 368, Lisboa) no dia 5 de dezembro de 1994, promovido pela Real Associação de Lisboa e pelo Gabinete de Estudos Olisiponenses

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Ainda Portugal não era uma nação independente e já as povoações entre os rios Douro e Vouga se denominavam TERRAS DE SANTA MARIA. Continua a sê-lo desde as primeiras horas do seu nascimento, por vontade expressa dos conquistadores. “Tal designação envolvia já a ideia da consagração de Portugal a Nossa Senhora e do particular carinho de Maria Santíssima pela recém-nascida nação, que Ela havia de salvar mil vezes nas horas críticas da sua história”2[1].

História ou lenda – para o caso pouco importa – é a cura do nosso primeiro Rei D. Afonso Henriques em Cárquere aos cinco anos de idade. Nossa Senhora teria pedido ao aio do principezinho, D. Egas Moniz, que o levasse àquele lugar para ser curado. Certo é que a igreja de Cárquere guarda ainda hoje minúscula imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus, de 29 mm de altura, de marfim, estilo visigótico, datada pelo especialista Virgílio Correia do século VII ou VIII. Há mais de mil anos que somos TERRA DE SANTA MARIA…

Consoante as fronteiras de Portugal se vão dilatando de Norte para Sul e os mouros cedem o terreno às forças cristãs, mesquitas transformam-se em catedrais, dedicadas a Nossa Senhora da Assunção, incluindo a da nossa diocese, a de Lisboa, conquistada aos mouros em 1147.

O privilégio da Assunção foi reconhecido oficialmente como dogma de fé divina e católica só em 1 de novembro de 1950.

Quando Portugal consolidava a sua independência, no século XIII, as escolas teológicas discutiam acaloradamente o privilégio da isenção do pecado original em Maria Santíssima. Não se punham reservas relativamente a pecados actuais, mas a universalidade da redenção operada por Jesus Cristo e a universalidade do pecado em Adão, ao que parecia aos mais argutos teólogos da época, não isentavam Maria do pecado original, enquanto criatura e filha de Adão.

Reconhecida como Theotocos, Dei genetrix, pelo Concílio de Éfeso em 431, no século VII a Igreja do Oriente começa a celebrar-lhe a festa da Imaculada, que também é introduzida mais tarde na Igreja do Ocidente, como o testemunha São Tomás de Aquino na célebre Summa Theologica 3[2]. Santo António de Lisboa refere em várias passagens do seu Opus Evangeliorum, mais conhecido por Sermones Dominicales, a Imaculidade de Maria e também a sua impecabilidade.

A palavra Imaculada, porém, na pena destes Doutores da Igreja assume sentido mais restrito do que ela tem hoje. De facto, São Tomás de Aquino, na sequência de São Bernardo de Claraval e do seu mestre Santo Alberto Magno, hesita e vê-se constrangido a recusar este privilégio mariano, porque, segundo ele, significaria uma diminuição da dignidade de Cristo, Redentor de todos os homens. Para o dominicano São Tomás de Aquino como para o seu amigo franciscano São Boaventura vale a teoria de Maria ter contraído o pecado original, enquanto herdeira da natureza de Adão4[3].

João Duns Escoto (nascido em Duns na Escócia por 1265), feito frade menor, defende nas Universidades de Oxford, Cambridge e Paris, contra a opinião corrente, a Imaculada Conceição da Virgem Maria, distinguindo a “liberatrix Redemptio”, aplicável ao conjunto dos mortais, da “praeservatrix Redemptio”, aplicável só a Maria. Escoto partia do princípio: Se não há oposição à autoridade da Igreja e à Sagrada Escritura, deve atribuir-se a Maria o que é mais excelente.

Com toda a argúcia e subtileza, o Doutor Subtil, depois de invocar: “Dignare me laudare te, Virgo sacrata“, defende em 1307, perante um público selectíssimo que se tinha reunido na Sorbonne, o privilégio da Imaculada Conceição. João Duns Escoto prova o privilégio mariano, servindo-se do seguinte silogismo:

. POTUIT, Deus podia preservar Maria do pecado original, porque para Ele nada é impossível;

. DECUIT, convinha que a Mãe do Filho de Deus fosse exaltada ao máximo, o que supõe a preservação do pecado original;

. ERGO FECIT, portanto, Ele assim o fez, para Se honrar a Si mesmo n’Ela.

O “atrevimento” mereceu ao hoje Beato João Duns Escoto, segunda expulsão da Universidade de Paris pelo rei Filipe IV, o Belo, simpatizante dos maculatistas. Desgostoso e humilhado, Escoto refugia-se em Colónia, onde morrerá no  ano  seguinte, a 8 de Novembro de 1308, aos 43 anos de idade.

A polémica não pára aqui. A razão irá impor-se à violência. A opinião imaculatista sai das aulas da Universidade e entra nas igrejas. O povo, que homenageava Maria como a “cheia de graça” do Evangelho, festejando-a como concebida sem mancha de pecado original desde o século XII, provoca o triunfo dos defensores deste privilégio. Parece que também aqui vale o prolóquio: Vox populi, vox Dei!

A própria Universidade de Paris acaba não só por aceitar a opinião escotista, mas também por torná-la obrigatória a todos os seus doutores. Por seu lado, o Concílio de Basileia, em 1431, define a Imaculada Conceição como dogma de fé… mas numa hora em que já não era legítimo; um século mais tarde, o Concílio de Trento aceita a verdade, sem a definir de maneira solene5[4].

De facto, no dia 21 de maio de 1546, o Cardeal Pacheco introduz o problema do privilégio mariano, propondo a definição dogmática, como se depreende da sessão de 13 de Junho imediato.

A maioria conciliar, porém, considera não oportuno o momento para tal, embora tivesse havido acordo acerca do facto de Maria Mãe de Deus não ter sido sujeita à lei comum do pecado original 6[5].

A 27 de Novembro de 1830, na Casa-Mãe das Irmãs de São Vicente de Paulo em Paris, Rue du Bac 140, Nossa Senhora aparece à noviça Catarina Labouré e encarrega-

-a de mandar cunhar a que irá chamar-se a Medalha Milagrosa, que teria ao centro Maria e ao redor, em oval, as palavras: Ó MARIA CONCEBIDA SEM PECADO, ROGAI POR NÓS, QUE EM TI POMOS A NOSSA CONFIANÇA. No verso da medalha haveria um M(aria) encimado por uma cruz e, por baixo, os dois corações de Jesus e Maria e o conjunto circundado por doze estrelas.

Esta revelação preparou de perto o caminho a Pio IX para a proclamação do dogma pela bulla Ineffabilis Deus, de 8 de dezembro de 1854, que utiliza precisa- mente o argumento fundamental do Beato João Duns Escoto na defesa deste privilégio mariano. Eis as palavras da definição:

“Para honra da santa e indivisível Trindade, ornamento da Virgem Mãe de Deus, exaltação da fé católica e incremento da religião cristã, Nós declaramos, proclamamos e definimos com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Apóstolos São Pedro e São Paulo e Nossa que a doutrina defensora de que a Bem-Aventurada Virgem Maria, no primeiro instante da Sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus Omnipotente e em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano, foi preservada imune de toda a mancha do pecado original, é revelada por Deus e por isso se deve acreditar firme e constantemente por todos os fiéis.”

Quatro anos mais tarde, em fevereiro de 1858, Maria digna-se aparecer em Lourdes a Bernardette Soubirous e identifica-se: EU SOU A IMACULADA CONCEIÇÃO. A festa da Senhora da Conceição, já na Alta Idade Média, estende-se à Península Ibérica, e sabemos que no dia 8 de dezembro de 1320 aparece em Coimbra a sua celebração solene. Por influência dos franciscanos, sempre e em toda a parte os mais lídimos paladinos deste privilégio mariano?… De momento, não tenho resposta positiva apodítica, mas apenas uma probabilidade.

O culto à Senhora da Conceição cresce rapidamente em todo o Portugal. Três séculos depois, exactamente em dezembro de 1646, o nosso rei D. João IV sanciona a crença do seus súbditos na doutrina de que a Virgem era preservada da mancha do pecado original, tornando-a Padroeira de Portugal. Estamos ainda a dois séculos da definição do dogma.

  1. João IV, nascido em Vila Viçosa a 19 de março de 1604, entra em Lisboa, na qualidade de Rei de Portugal, no dia 6 de dezembro de 1640. A 8, assistiu, pela primeira vez na capela real, à festa da Imaculada Conceição, tendo pregado Fr. João de São Bernardino, um franciscano de Lisboa, onde nasceu em 1577 e morreu em 1655, depois de ter vivido vários anos em Roma e donde regressou em 1629, aureolado pela fama de pregador insigne. Ele foi o primeiro pregador a apoiar oficialmente a Restauração neste sermão de 8 de dezembro de 1640. Na hora, entre outras palavras adequadas ao momento, afirmou:

“Em sábado, dedicado à Mãe de Deus, se aclamou rei, por geração, linha e sangue, o invictíssimo Rei D. João, o quarto de nome, nosso senhor. Hoje é o oitavo dia da sua aclamação, sábado dedicado pela Igreja à Imaculada Conceição da mesma divina Senhora: quiçá assinalou Deus este dia do sábado em seu descanso – requievit die septimo – para que ficasse assinalado por dia deputado ao descanso de Portugal.”7[6].

Na sequência dos seus antecessores, D. João IV consagra Portugal à Santíssima Virgem Maria Mãe de Deus sob o privilégio da Conceição. A provisão régia data de 25 de março de 1646. Na sua parte essencial deixa ler:

―Estando ora junto em Cortes com os três Estados do Reino, lhes fiz propor a obrigação que tínhamos de renovar e continuar esta promessa [de D. Afonso Henriques e sucessores], e venerar com muito particular afecto e solenidade a Festa de Sua Imaculada Conceição e nelas, com parecer de todos, assentamos de tomar por Padroeira de nossos Reinos e Senhorios a Santíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição, na forma dos Breves do Santo Padre Urbano VIII, obrigando-me a haver confirmação da Santa Sé Apostólica.”

“Da mesma maneira prometemos e juramos, com o Príncipe e Estados, de confessar e defender sempre, até dar a vida, sendo necessário, que a Virgem Senhora Mãe de Deus foi concebida sem pecado original.”8[7]

Complementar desta consagração oficial da Pátria restaurada a Nossa Senhora da Conceição, o mesmo Rei D. João IV, a 17 de janeiro de 1946, já tinha ordenado que na Universidade de Coimbra se não conferissem graus sem se prestar primeiro o juramento de defender a Imaculada Conceição da Santíssima Virgem; e no dia 11 de setembro mandou às Câmaras Municipais, aos Cabidos e ao Clero em geral que escolhessem Nossa Senhora da Conceição para sua Padroeira.

Em 1648 cunha-se moeda especial de ouro e prata, destinada a pagar anualmente os 50 cruzados de ouro, devidos por juramento à Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em “sinal de tributo e vassalagem”. Com o tempo, tornaram-se moeda corrente em Portugal. Estas moedas mostram, de um lado, as armas portuguesas, a cruz da Ordem de Cristo e a legenda latina: JOANNES IV DEI GRATIA PORTUGALLIAE ET ALGARBIAE REX; do outro, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, ladeada de expressivos símbolos marianos e as duas palavras: TUTELARIS REGNI.

Quem olha para o mapa de Portugal Mariano surpreende-se com a multidão de santuários que o povoam desde o Norte ao Sul. Só para citar alguns, verificamos:

. no distrito de Viana do Castelo o grandioso santuário da Senhora da Peneda, porventura mais concorrido por espanhóis do que por portugueses;

. em Braga sobressai o Santuário do Sameiro, erguido em 1904 para honra de Maria no privilégio da sua Imaculidade por ocasião do cinquentenário da proclamação dogmática;

. em Bragança há, entre outros, o da Assunção de Vila Flor;

. a cidade do Porto tem no seu brasão de “cidade invicta” a imagem de Nossa Senhora;

. na diocese de Lamego, para além de Santa Maria de Cárquere, atrás citada, é deslumbrante o Santuário dos Remédios, precedido de monumental escadório (a lembrar o escadório do Bom Jesus do Monte, no arrabalde de Braga);

. na zona central do país encontramos a Senhora do Montalto (Arganil), a Senhora do Almortão (Idanha-a-Nova), o Santuário de Nossa Senhora de Fátima (Cova da Iria), que suplantou tudo e todos, a Senhora da Nazaré e Santa Maria de Alcobaça e Nossa Senhora da Vitória da Batalha;

. na área de Lisboa e Setúbal recordamos a procissão de Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora da Rocha (Carnaxide) e Senhora do Cabo (Cabo Espichel);

. no Alentejo é célebre a Senhora da Conceição de Vila Viçosa, a Senhora da Piedade de Elvas e a Senhora da Saúde de Serpa;

. no Algarve podemos citar a Senhora da Piedade de Loulé e a Senhora de Orada de Albufeira.

Naturalmente, os santuários nomeados não passam de amostras do culto mariano em Portugal. Remeto os interessados para as obras clássicas do tema: Santuário Mariano, de Fr. Agostinho de Santa Maria (século XVIII), em dez volumes, e História do culto de Nossa Senhora em Portugal, de Alberto Pimentel (1899). Nos meados do presente século XX, Jacinto Reis publicou Invocações de Nossa Senhora em Portugal de aquém e além-mar e seu Padroado. Conhecemos ainda a monografia Padroado Mariano no território do Douro Sul, publicado em 1989 em Lamego e assinado pelo académico da Academia Portuguesa da História Dr. Francisco J. Cordeiro Laranjo, que historia brevemente nada menos de 85 freguesias da diocese de Lamego que têm Nossa Senhora por Orago. Senhoras da Conceição, por exemplo, há pelo menos seis, a saber: a de Trevões (São João da Pesqueira), a de Penelas de Cambres (Lamego), a de Espinhosa (São João da Pesqueira), a de Cujó (Castro Daire), a de Arnas (Sernancelhe) e a de Lamosa (Sernancelhe).

Arquitectos, escultores, pintores, artistas e artesãos da mais diversa espécie, ontem e hoje, aprimoraram-se em prestar à Virgem Maria o melhor do seu engenho. Não lhes ficaram atrás os artistas da palavra, especialmente os poetas, inclusive Gil Vicente, Luís de Camões, Antero de Quental, Barbosa Bocage e Guerra Junqueiro. É de João de Lemos, porém, que retiro a seguinte poesia, por ser pequenina e resumir muito do que se poderia dizer acerca da Maria na sua relação com a alma portuguesa:

Ave, Maria, que és nossa Padroeira e crença e mãe!

Portugal outra não tem Mais bela, nem que mais possa;

Não quer outra a humilde choça. Nem o palácio real.

És nossa, do rei, do povo;

És de todo o Portugal.

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Notas

2[1] José Maria Félix, Santa Maria e Portugal, Lisboa, 1940, p. 23.

3[2] S, Tomás de Aquino, Summa Theologica, III, q. 27, art. 2, ad. 3.

4[3] Cf. Waltram Roggisch, OFM, Saggi sulla vita e pensieri del Beato Duns Scoto, Grottaferratta, 1985, p. 18.

5[4] P. Josep Pijoan, Joan Duns Escot, Mestre de l‟Amor I Doctor de Maria, Barcelona, 1992, pp. 54-55.

6[5] Cf. Saggi sulla vita e pensieri del Beato Duns Scoto, p. 44.

7[6] Em José Maria Félix, Op. cit,, p. 82

8[7] Idem Ibidem, pp. 84-97, o texto completo.