A Oração dos Cristãos

A Oração dos Cristãos

Para que serve a oração?

Os nossos contemporâneos mostram alguma fadiga e até aversão à simples palavra “oração”, preferindo substituir as tradicionais fórmulas de prece por variadas formas de meditação.

A resposta para esta fadiga poderá passar pela “modernização” das formas tradicionais de orar ou até pelo abandono das mesmas, substituindo-as por modelos novos e adaptados ao nosso tempo. Sem negar a necessidade de uma permanente atualização das linguagens e formas de experiência espiritual, pensamos não ser menos proveitoso reaprender a orar, regressando às raízes comuns do homo orans, e, no caso dos cristãos, retornar às fontes da experiência orante bíblico-cristã. É o que se propõe neste livro que nos mostra como os primeiros cristãos oraram e intenderam a Oração distintiva dos cristãos, isto é, o Pai Nosso.

Efetivamente, o Pai Nosso é, ao mesmo tempo, o “compêndio” de todas as orações do Povo de Israel, e a nova forma de orar que Jesus ensinou aos seus seguidores, no contexto do chamado “Sermão da Montanha” e na sequência das “Bem-aventuranças” (Mt 6,1-13). Nesse novo Sinai, o Deus de Abraão e de Moisés revela-se a todas a nações e povos como Pai de todos os que escutam e vivem as Bem-aventuranças.

Para que serve a oração?

À pergunta “para que serve orar?”, os mestres da oração, inspirados em Jesus, responderam: “para alimentar o desejo”. A oração é, de facto, a ginástica do desejo. «Se és habitado pelo desejo de ver a face do Pai que está nos Céus – ensina Evágrio – não te deixes levar por nada deste mundo» (Sobre a oração, 114).  No Pai Nosso exercita-se especialmente o desejo de Deus, ou, como explica S. Agostinho, exercitamos o desejo de plenitude e felicidade que habita todo o ser humano.

«O teu desejo é a tua oração, e se o teu desejo for continuado, contínua será a tua oração. Não foi por acaso que o Apóstolo disse: Orai sem cessar (1Ts 5,17)… há uma oração interior não interrompida que é o desejo. Faças o que fizeres, se desejares Deus, nunca interrompes a tua oração. Se não queres interromper a tua oração, não interrompas o teu desejo. O teu desejo continuado e a tua voz continuada» (En. in Psal. 37,14).

Face às perguntas prováveis do crente de todos os tempos: “para quê rezar?”; “porquê manifestar nossos desejos a Deus, se Ele já conhece nossas necessidades?”, o bispo de Hipona explica que a oração do Pai Nosso exercita e, ao mesmo tempo, regula o desejo:

«Em primeiro lugar, Nosso Senhor suprimiu o palavreado, para não dirigires a Deus muitas palavras, como se quisesses ensinar a Deus com a abundância de palavras. Por isso, quando pedes, é preciso que seja com piedade não com verbosidade. Na verdade, o vosso Pai sabe o que necessitais, antes de lho pedirdes (Mt 6,8). Não queirais então falar muito, porque ele sabe o que necessitais. No entanto, não se dê o caso de alguém aqui dizer: “Se Ele sabe o que necessitamos, para que é que dizemos mesmo poucas palavras? Para que é que rezamos? Se Ele próprio sabe, então que nos dê o que Ele sabe que nos é necessário”. Mas Ele quis que rezes, precisamente para dar o necessário ao que o deseja, de modo a não parecer vil o que Ele vier a dar, visto que Ele também insinuou o próprio desejo. Portanto, as palavras que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou na oração são a regra dos desejos. Não te é lícito pedir nada para além do que aí foi escrito» (Sermão 56, 3. 4).

Por conseguinte, ao pedir o que desejamos, adestramos e orientamos o desejo (cf. Agostinho, Sermão 59,5.8). Ora o desejo mais profundo e radical do nosso ser coincide com a busca da felicidade, ou da vida feliz. Esta, porém, só pode ser saciada com o Sumo Bem que é Deus (cf. Agostinho, Ep. 130, 16, 30). Por isso o Hiponense nos aconselha: «pede a vida feliz que todos os homens buscam possuir… que outra coisa deves pedir?» (Ibid. 9,18).

Todas as petições que compõem o Pai Nosso não são mais do que concretizações deste desejo que nos habita em profundidade. Como lembra repetidamente S. Agostinho «as palavras que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou na Oração são o modelo do que devemos desejar» (Sermão 56,4). Efetivamente, através desta Oração, são ativados tanto o desejo como a recetividade, duplo movimento fundamental no progresso espiritual: «nosso Deus e Senhor quer exercitar com a oração [do Pai Nosso] nosso desejo, e assim prepara a capacidade para recebermos o que nos há de dar» (Ep. 130,17).

Cada uma das súplicas da Oração do Senhor é concretização deste exercício de amplificação do desejo.

Para saber mais: como oravam os primeiros cristãos?

É deste “desejo” e “necessidade” que trata este livro intitulado: “A oração dos Cristãos”; com o subtítulo: “O Pai Nosso comentado pelos Padres da Igreja”. São assim chamados os grandes mestres do pensamento Cristão dos primeiros seis séculos da nossa era. Estes Padres da nossa identidade cultural e cristã viram no Pai Nosso um resumo do Evangelho e o padrão de toda a vida orante, mas também a regra comportamental para uma nova ética transformadora do mundo. Embora conscientes de que para orar não são necessárias grandes teorias ou explicar tudo, estes nossos Pais também sabiam bem como a ignorância leva à desvalorização e negligência. Sentiram, por isso, a necessidade de explicar a Oração do Senhor, procurando “traduzir” os seus múltiplos significados e implicações para os homens e mulheres de cada tempo.

Desta forma, legaram-nos um verdadeiro tesouro, rico de textos e conteúdos que, infelizmente, continuam a ser desconhecidos da maioria dos nossos contemporâneos.

Vale, por isso, a pena relembrar como os primeiros cristãos e pastores oravam e entendia a oração, na esperança de que o seu ensinamento ajude os homens e mulheres de hoje, como ajudou os cristãos do seu tempo e de outros tempos, a rezar melhor, orando como e com Jesus.

Ao avivarmos e preservarmos a memória de uma tradição orante, que já é, ela própria, património comum, visamos também evidenciar a continuidade e profundidade de uma experiência religiosa que merece, particularmente em nossos dias, ser conhecida e partilhada.