ENCONTRO DE FORMAÇÃO PERMANENTE

ENCONTRO DE FORMAÇÃO PERMANENTE

VIVER HOJE A VIDA FRATERNA SEGUNDO A REGRA

 

No dia 1 de maio de 2023, teve lugar no Convento da São Francisco, em Leiria, um encontro de Formação permanente da Província dos Santos Mártires de Marrocos de Portugal. Estiveram presentes 42 irmãos para rezarem juntos e aprofundarem a sua espiritualidade neste ano de 2023, em que celebramos o oitavo centenário da aprovação da nossa forma de vida evangélica e franciscana.

Neste encontro tivemos a presença do Definidor Geral da nossa Conferência (Portugal, Espanha, Itália e Albânia), Frei Cesare Vaiani que nos expôs o tema: Viver hoje a vida fraterna segundo a Regra.

Deixamos aqui as suas palavras.

Agradeço-vos de coração pelo convite; recordo com alegria minha participação nos dois dias do vosso Capítulo provincial ano passado e estou muito contente de estar aqui convosco novamente.

O tema que me foi pedido é como viver hoje a vida fraterna segundo a Regra. Gostaríamos, portanto, de aproveitar a ocasião do centenário da aprovação da Regra para refletir sobre este texto, que é o fundamento da nossa vida como frades.

Premissa

Gostaria de introduzir nosso discurso com uma observação que me parece oportuna neste contexto, que não é o de uma conferência científica, mas um encontro de frades que querem refletir sobre a Regra.

Nós frades, quando falamos da Regra, não falamos simplesmente de um dos Escritos de São Francisco; falamos da Regra que professamos. Obviamente, não estou a negar que a Regra faça parte dos Escritos; mas estou a observar que para nós é “fora do comum”, pelo fato de que nosso vínculo com este texto é diferente do que temos com os outros Escritos.  Para simplificar: nós não professamos o Cântico do Irmão Sol ou o Testamento, mas a Regra, e, portanto, a relação existencial de cada um de nós com este texto é diferente se comparado aos outros.

Parece-me importante, no início, partir dessa constatação, para uma hermenêutica correta do texto, que nos convida a tornar conscientes nossos preconceitos, quando abordamos qualquer assunto. Em suma: estamos cientes do lugar um tanto “único” da Regra para nós frades e cultivamos um vínculo afetivo especial com este texto.

Depois desta breve premissa “hermenêutica”, vou dividir o meu discurso em duas partes: na primeira farei uma brevíssima síntese da história que conduziu ao texto da Regra Bulada, e vou ilustrar algumas características gerais; na segunda parte, vou me deter mais especificamente sobre o tema da vida fraterna que é explicitamente indicado pelo título que me foi designado.

A Regra Bulada

Para abordar a Regra Bulada, é necessário ter em mente o processo histórico que levou ao texto atual e que podemos fixar em três pontos de evolução: a Proto-regra, a Regra não Bulada e a Regra Bulada.

Por Proto-regra compreendemos o texto que Francisco, juntamente com os primeiros companheiros, apresentou ao Papa Inocêncio III em 1209 para ser aprovado. O próprio Francisco fala desse texto no seu Testamento, quando diz: “E eu o fiz escrever com poucas palavras e de modo simples e o Senhor Papa mo confirmou”.

A partir desse texto desdobrou-se aquela que chamamos de Regra não Bulada, através das adições que foram feitas a cada ano por Francisco e seus irmãos, com base na experiência. Uma vez por ano, de fato, reuniam-se no Capítulo, para Pentecostes, e faziam o que nós chamaríamos de verificação: examinavam as experiências feitas durante o ano passado, nas várias regiões do mundo, e confrontavam-nas com a Proto-regra, que continha as normas essenciais de sua forma de vida. Dessa confrontação nasciam as decisões que eram inseridas no próprio texto, no lugar apropriado, e que faziam crescer, ano após ano, o texto inicial das “poucas e simples palavras” até os 24 capítulos que encontramos na redação final da Regra não Bulada, de 1221.

No Capítulo daquele ano 1221 o texto foi novamente examinado, dando-lhe a forma que nós conhecemos; sabemos, no entanto, que esse não foi apresentado ao Papa para a aprovação. Não sabemos as razões para essa decisão, mas provavelmente foi necessário aceitar a sugestão da própria Cúria papal, que não considerava oportuno aquele texto longo, com muitas citações evangélicas e textos espirituais, e queria algo mais sóbrio e jurídico.

Francisco foi encarregado de redigir o texto a ser apresentado ao Papa, com a ajuda de algum outro frade e o conselho do Cardeal Hugolino; a nova redação estava pronta para o Capítulo de 1223, que a aprovou, talvez com algumas modificações, de modo a apresentá-la à Cúria romana que, em 29 de novembro do mesmo ano 1223, a aprovou com uma bula pontifícia: daí o nome de Regra Bulada.

Essa história mostra-nos que a Regra Bulada nasceu da experiência da vida e que, para compreendê-la bem, também é necessário ter em mente o texto da Regra não Bulada, que a precedeu e nessa deixou as suas marcas.

Uma comparação entre a Regra Bulada e a não Bulada

Vamos primeiro fazer uma comparação material entre a Regra não Bulada e a Bulada: a primeira tem 24 capítulos, a segunda tem 12, ou seja, a metade.

A primeira tem cerca de 6600 palavras, a segunda cerca de 1840 palavras, ou seja, cerca de 3 vezes e meia mais curta. Isso mostra que um primeiro objetivo era ter um texto mais breve: e o objetivo foi alcançado.

O tipo de linguagem também mudou parcialmente. Enquanto a primeira tem apenas algumas inserções de caráter jurídico, a segunda tem uma linguagem mais atenta ao direito canônico: nisto podemos reconhecer a influência do Cardeal Hugolino, perito jurista.

Na primeira encontramos uma maior abundância de citações evangélicas e bíblicas, na segunda, as citações bíblicas explícitas são muito menos numerosas. Deve-se notar, no entanto, que a Regra Bulada tem aquela belíssima declaração inicial: “A Regra e vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade”, que substitui o texto da não Bulada, que dizia: “A Regra e vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem propriedade; e seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz:…” e seguem-se quatro citações evangélicas. Enquanto a Regra não Bulada preferiu colocar na íntegra as quatro citações evangélicas, a Bulada faz uma síntese imediata e expressiva, simplesmente falando de “observar o santo Evangelho”, que recolhe e compreende todas as citações possíveis.

Note também que em ambos os textos se fala de “regra e vida”: não só a Regra, não apenas a vida. Com efeito, como já referimos, o texto escrito da Regra nasceu da vida concreta: primeiro se vive de acordo com a intuição carismática, depois se decide colocar por escrito esta intuição e esta prática de vida, para dessa obter a aprovação da Igreja. Às Regras, portanto, podemos aplicar a bela frase encontrada no cap. 5 da Regra da Ordem Franciscana Secular, que nos convida a “passar do Evangelho à vida e da vida ao Evangelho”. A Regra é um texto que nasce desta relação entre o Evangelho e a vida, da experiência concreta, em estreito contato com a vida dos frades.

A presença de Francisco na Regra

Salientamos uma característica: na Regra Bulada ressoa nove vezes a voz de Francisco na primeira pessoa, de uma forma desafiante e evocativa, e também um pouco estranha em uma Regra.

Quatro vezes são ordens claras e incisivas, expressas com fórmulas de comando muito precisas (ordeno ou imponho por obediência).

Cinco vezes são expressas com uma fórmula exortativa, que por quatro vezes inclui os verbos “admoesto e exorto” (moneo et exhortor).

Uma quinta vez a intervenção de Francisco ainda é exortativa, mas expressa de forma mais matizada, com um apelo aos frades, chamados duas vezes de “caríssimos irmãos”[1].

Esses textos eliminam uma interpretação de alguns historiadores, para os quais a Regra Bulada seria uma espécie de cedência de Francisco, relutantemente aceita por ele. A lista dos nove textos citados mostra que Francisco está bem presente e fala em primeira pessoa, sem apresentar qualquer cedência. Todos sabemos que a Regra não Bulada tem capítulos muito bonitos e um “tom” geral talvez mais fascinante do que a Regra Bulada: mas isso não significa que Francisco esteja presente em uma e ausente na outra. Em vez disso, devemos lidar com esta capacidade de Francisco para “inserir-se” com toda a sua força e a sua intuição em documentos de diferentes matizes, como as duas Regras.

Aqui emerge a presença singular de Francisco na espiritualidade franciscana, que é uma presença muito “pessoal”, mais forte do que em outras tradições espirituais: na Regra emerge esta presença significativa de Francisco em primeira pessoa.

Ter o Espírito do Senhor

Outra característica que quero destacar é que em uma dúzia de textos da Regra faz-se referência mais ou menos explicitamente à “inspiração divina”, ao agir “espiritualmente” (spiritualiter), à ação do Espírito (a santa operação), ao discernimento “segundo a inspiração do Senhor” ou “segundo Deus” ou “com a bênção de Deus” ou “em nome do Senhor” ou também segundo “a necessidade”, de acordo com a graça (referida, por exemplo, ao trabalho, mas sempre graça “concedida pelo Senhor”)[2].

São todas expressões que revelam o grande espaço concedido por Francisco e pela Regra à ação do Espírito Santo, que remete ao discernimento espiritual: é uma questão de entender o que é bom fazer de acordo com Deus, e este é o âmbito do discernimento espiritual, isto é, animado pelo Espírito. Significa também que a Regra não é um manual rígido de leis a aplicar, mas pede que cada um de nós coloque nela a sua interpretação e o seu discernimento, na escuta do Espírito.

O tema do “ter o Espírito do Senhor” é tema central na experiência de Francisco, e pode ser identificado como o motor a partir do qual tudo ganha vida.

O texto a ter em mente encontra-se no décimo capítulo da Regra Bulada, onde Francisco diz que “antes de tudo, devem desejar ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”. Nesta expressão podemos identificar uma síntese de todo o caminho espiritual de Francisco.

Estas palavras estão inseridas numa longa frase, que começa com a voz de Francisco que diz: “Entretanto, admoesto e exorto em Jesus Cristo, Nosso Senhor”. O objeto desta admoestação e exortação é duplo: de um lado, “negativamente”, Francisco faz uma lista das coisas negativas para evitar, dizendo “que os irmãos se preservem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo, detração e murmuração”, para, em seguida, passar para o positivo, solicitando que cuidem que, antes de tudo, devem desejar ter o espírito do Senhor e seu santo modo de operar: rezar sempre a Deus com coração puro; ser humilde e paciente nas perseguições e enfermidades; amar aqueles que nos perseguem, censuram e atacam.

A frase sobre o “desejar ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” é, portanto, inserida nesse contexto.

Limitamo-nos a apontar, por um lado, o “desejar”, verbo muito franciscano, que é o sinal da falta (desejo o que me falta) mas também da aspiração à plenitude e, por outro lado, a estreita e importante ligação entre o Espírito e o “santo modo de operar”, isto é, entre a esfera espiritual e aquela prática, que não pertencem a dois mundos diferentes, mas estão intimamente conectados. Francisco sabe bem que o Espírito age e se manifesta na vida, e que o vivido (o agir, o operar) são lugares de revelação do Espírito: retorna a estreita relação entre a vida e o evangelho que já observamos.

Este “ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar”, de acordo com o texto, tem três consequências, a saber:

  • a oração (rezar sempre a Deus com coração puro),
  • ser humilde e paciente nas perseguições e enfermidades
  • e, finalmente, o amor aos inimigos, quando diz para amar aqueles que nos perseguem, censuram e atacam.

Nesses três pontos, pode-se reconhecer a direção para Deus (com a oração), para consigo mesmo (com a humildade e paciência) e para o próximo (com o amor aos inimigos).

Examinemos melhor esses três pontos: o primeiro diz respeito à relação com Deus, através da oração, da qual duas características são dadas: em primeiro lugar, deve ser “sempre” segundo a palavra evangélica que nos convida a rezar sempre[3] e, em segundo lugar, deve ser caracterizada pelo “coração puro”, de acordo com um convite que também constitui em outros textos de Francisco uma característica da oração[4].

O segundo ponto, que fala de humildade e paciência, remete a uma relação verdadeira e pacífica consigo mesmo e com os acontecimentos da própria vida. A humildade é, antes de tudo, verdade, reconhecimento e aceitação do que eu realmente sou, é a forma de viver sem nada de próprio para com Deus (a quem se contrapõem o orgulho e a vanglória) e para com o próximo, a quem se contrapõem a soberba e a arrogância, mas também a ira e a perturbação; no fundo, tudo isso é simplesmente verdade, reconhecimento da minha verdade.  Neste reconhecimento nasce “a paciência na perseguição e na enfermidade”: aqui somos reconduzidos à relação com os acontecimentos da própria vida, que podem se referir à ação dos outros, como no caso da perseguição, mas também decorrem das situações negativas da existência, como enfermidade e doença. Em qualquer caso, a paciência é a atitude que permite a Francisco conservar e até mesmo encontrar a paz: nos seus Escritos, Francisco muitas vezes entrelaça o verbo suportar – sustentar (e, portanto, a paciência) com a palavra paz. Procede, assim, por exemplo, no Cântico: “Bem-aventurados os que as sustentam em paz, Que por ti, Altíssimo, serão coroados”[5].

Finalmente, o último âmbito evocado pelo nosso texto é o amor aos inimigos, identificados em “aqueles que nos perseguem, censuram e atacam”. É claro que nisso também está incluído todo outro tipo de amor ao próximo: se conseguimos amar os inimigos, tanto mais os irmãos e os próximos. Trata-se também neste caso de uma atitude recorrente em outras passagens dos Escritos de Francisco, e que de alguma forma constitui o ponto culminante do itinerário espiritual[6].

Este convite a desejar ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar é, portanto, uma bela síntese da mensagem espiritual de Francisco: essa inclui a relação com Deus, consigo mesmo e com o próximo e põe tudo sob o sopro do Espírito do Senhor. Olhando para a nossa vida, podemos perguntar-nos que lugar damos ao Espírito do Senhor e ao seu santo modo de operar. Nossa vida é animada pelo frescor deste sopro do Espírito, ou é uma cansativa repetição do que sempre temos feito?

Passemos, agora, ao tema específico das relações fraternas segundo a Regra.

As relações fraternas

Já no texto que acabamos de examinar falava-se de relações com os outros, convidando, por um lado, a evitar as atitudes que prejudiquem o relacionamento com os irmãos, como a soberba, a vanglória, a inveja e avareza e, por outro lado, a atender ao santo modo de operar do Espírito que nos conduz ao ponto extremo do amor aos inimigos, culminação de todo bom relacionamento fraterno.

Mas olhando para toda a Regra, deve-se observar que o tema das relações fraternas a atravessa em sua totalidade, todas as vezes que se fala de “frades menores”, ou simplesmente de “frades”, que seria melhor traduzido como “irmãos” (em latim, bem como no italiano da época, as duas palavras – frate e fratello – não eram ainda distintas).

A síntese do comportamento requerido aos irmãos no relacionamento fraterno está certamente no capítulo 6, onde se diz:

6,7-9: “E onde quer que estiverem e se encontrarem os irmãos, mostrem-se afáveis entre si. E, com confiança, manifeste um ao outro as suas necessidades, porque, se uma Mãe ama e nutre seu filho carnal (cf. 1Ts 2,7), com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual? E, se algum deles cair doente, os outros irmãos o devem servir, como gostariam de ser servidos (cf. Mt 7,12)”.

Em primeiro lugar, assinalamos neste texto o convite à reciprocidade: a exortação “mostrem-se afáveis” é marcada por esse “entre si” (lat. invicem), que enfatiza o fato de que cuidar dos outros é sempre também um ser cuidado pelos irmãos, numa relação que é feita de um servir e de um ser servido, de um cuidar e ser cuidado, que estão continuamente interligados.

Nesta perspectiva de reciprocidade é colocado também o convite “manifeste um ao outro as suas necessidades”: trata-se de uma atitude que nem sempre é bem vivida na nossa vida fraterna. Parece-me que há alguns irmãos que são muito rápidos para manifestar as suas necessidades, tornando-as demandas que condicionam a vida de todos; mas também há muitos de nós que não têm a serena humildade para dizer do que necessitam e que procuram se prover   por conta própria, talvez voltando-se para fora da fraternidade.  É necessário um sábio equilíbrio, a fim de ser capaz daquela fraterna reciprocidade para a qual somos convidados pela Regra.

No coração deste texto, no entanto, está aquela semelhança materna que já estava presente na Regra não Bulada e passou para o nosso texto: o convite para amar o irmão “porque, se uma Mãe ama e nutre seu filho carnal, com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?”.

Sabemos que Francisco é peremptório em não dar a nenhuma criatura humana o nome de pai, e em recusá-lo para si, em obediência à palavra do Evangelho, onde Jesus ordena não chamar a ninguém de pai ou mestre;  mas é igualmente claro que tal censura verbal não se aplica à palavra mãe, que retorna várias vezes nos escritos do Poverello: ele a aplica a si mesmo na curta Carta assinada ao irmão Leão, dirigindo-se a ele “como uma mãe”, e usando-a na chamada Regra para os eremitérios, quando diz que “dois deles sejam as mães e tenham dois ou ao menos um por filho”.

Em nosso texto a imagem materna evoca o cuidado do filho, porque a mãe “ama e nutre seu filho carnal”, ou seja, ela aleita-o e cuida das necessidades dele: por isso que o uso que Francisco faz dessa imagem quer indicar um relacionamento fraterno que consiste em cuidar do irmão. Este significado é sublinhado ainda pela seguinte frase, com a qual se conclui o capítulo:

E, se algum deles cair doente, os outros irmãos o devem servir, como gostariam de ser servidos.

Aos relacionamentos com os irmãos em situação de doença e fragilidade, aplica-se a chamada “regra de ouro”, que diz para fazer aos outros o que gostaríamos que fosse feito a nós mesmos: no caso dos irmãos doentes, a atitude justa é precisamente a de cuidar deles.

Noutras partes, na Regra, este mesmo cuidado é expresso na aquisição de roupas para os irmãos, talvez por meio de “amigos espirituais”; finalmente, outra maneira significativa de cuidar dos irmãos é partilhar com eles a recompensa de seu próprio trabalho, que cada frade não retém para si mesmo, mas entrega à fraternidade[7]. Sobre este último ponto, penso que seria útil para nós um exame de consciência: sabemos bem que as nossas Constituições são muito claras ao dizer que “tudo o que os irmãos receberem pelo próprio trabalho ou em razão da Ordem, e tudo o que, de alguma forma, receberem a título de pensão, subvenção ou seguro, é adquirido para a Fraternidade”[8]. Quem não concede à fraternidade o que recebe é simplesmente um ladrão: considero que seja importante nos recordarmos disso.

Neste texto do capítulo 6 ressoa, portanto, o convite ao cuidado recíproco, segundo o modelo da mãe, e não há referências a atitudes negativas.

Mas Francisco sabe que os frades não são perfeitos, e em outras passagens adverte contra os riscos que ameaçam a vida fraterna.

No capítulo 10, como já vimos, havia uma lista de atitudes que minam o relacionamento fraterno: “soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo, detração e murmuração”: trata-se de diferentes atitudes que, de outro modo, remetem à tentação de dominar os outros, isto é, de fazer deles nossa propriedade. Com a soberba e a vanglória, aproprio-me, perante os outros, do que o Senhor fez de bom em mim; e assim com a inveja cultivo em mim a vontade de apropriar-me do bem que há no outro, talvez tentando danificar sua imagem através da detração e da murmuração. A avareza, finalmente, me faz reter em minhas mãos fechadas o que eu deveria partilhar com os irmãos. Parece, portanto, que o principal risco nos relacionamentos fraternos seja essa apropriação, que é outra forma de dizer egoísmo, e que é o oposto da nossa promessa de viver sem nada de próprio.

Um âmbito especial do relacionamento fraterno é a relação com os frades ministros, marcada por “tanta familiaridade, que os irmãos possam falar e haver-se com eles como senhores para com seus servos”[9]: é uma verdadeira reviravolta das relações em comparação com o que o mundo pensa, segundo o modelo evangélico de Jesus, que veio para servir e não para ser servido e que se inclinou para lavar os pés dos discípulos.

Por fim, gostaria de sublinhar que a relação fraterna também caracteriza significativamente a missão evangelizadora dos frades, como faz-nos entender o texto em que Francisco nos ensina “como os irmãos devem ir pelo mundo”:

Aconselho, admoesto e exorto a meus Irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo que, ao irem pelo mundo, não discutam, nem porfiem com palavras, nem façam juízo de outrem, mas sejam mansos, pacíficos, modestos, afáveis e humildes, tratando a todos[10].

A imagem do “ir pelo mundo” indica a missão dos frades, continuando a ação de Jesus que envia os discípulos pelo mundo para anunciar o Evangelho. Portanto, é muito significativo notar que para esta missão a indicação de Francisco não diz respeito ao conteúdo do anúncio, mas à maneira de como levar este anúncio e este testemunho: sem brigas, sem julgamento, em paz e humildade com todos. Esta é uma indicação preciosa também para nós: a nossa primeira evangelização é a vida fraterna mansa e humilde. As nossas CCGG (Constituições Gerais) dizem-nos de maneira clara:

Sendo a comunhão fraterna, sustentada pela oração e pela penitência, o primeiro e preclaro testemunho do Evangelho e o sinal profético de uma nova família humana, o comportamento dos irmãos entre as pessoas seja tal que quem os vir ou ouvir glorifique e louve o Pai que está nos céus[11].

Recordemo-nos disso, quando nos perguntamos qual é a maneira para renovar a nossa missão e evangelização: “a comunhão fraterna, sustentada pela oração e pela penitência, é o primeiro e preclaro testemunho do Evangelho”.

Conclusão

Nós percorremos rapidamente algumas frases da nossa Regra para nos fazer crescer no desejo de reler este belo texto. Todos nós estudamos esse texto no noviciado, e pergunto-me quantas vezes o retomamos em nossas mãos depois do noviciado. A ocasião do centenário pode ajudar-nos a reler a Regra, talvez com a ajuda das Constituições, que dela são para nós a interpretação mais autorizada.

Para concluir, direi uma palavra precisamente sobre esse importante vínculo entre a Regra e as Constituições, que “apresentam as normas fundamentais que, em toda a parte, devem ordenar, segundo a Regra, a vida de todos os irmãos”[12]. Agrada-me notar que a própria Regra, no seu texto original, prevê e de certa forma exige que haja as Constituições, ou seja, outras normas que a especificam, quando diz no sétimo capítulo:

Se alguns dos irmãos, por instigação do inimigo, pecarem mortalmente, tratando-se daqueles pecados, acerca dos quais foi ajustado entre os irmãos que se recorra somente aos ministros provinciais, devem os ditos Irmãos recorrer a eles, o mais cedo que puderem, sem demora [13].

Quando se fala “daqueles pecados, acerca dos quais foi ajustado entre os irmãos que se recorra somente aos ministros provinciais” refere-se a uma lista de tais pecados que não está no texto da Regra, mas que o acompanha, explica-o e atualiza-o: é o que hoje chamamos de Constituições gerais.

Podemos, portanto, dizer que não inventamos as Constituições, talvez como uma desculpa para não observar fielmente a Regra: é a própria Regra que, sabiamente, exige a existência dessas, justamente para manter viva aquela relação entre Regra e vida, da qual ela nasceu.

Eu realmente concluo: um dia, mais ou menos distante, cada um de nós pronunciou estas palavras:

professo a vida e a Regra dos Frades Menores, confirmada pelo Papa Honório, e prometo observá-la fielmente segundo as Constituições da Ordem dos Frades Menores.

Se a celebração do centenário nos fizer repetir com sincero coração essas palavras, terá alcançado um grande resultado! Obrigado pela vossa escuta, irmãos!

  

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[1] RB 6,4 “Esta é aquela sumidade da mais elevada pobreza que a vós, meus caríssimos Irmãos, instituiu herdeiros e príncipes do reino dos céus e, fazendo-vos pobres de bens, vos cumulou de virtudes (cf. Tg 2,5).

Seja esta a vossa parte, que conduz à terra dos vivos (cf. Sl 141,6). Pelo que, meus diletíssimos irmãos, apegando-vos inteiramente a ela, não queirais, por amor ao nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, possuir jamais outra coisa, debaixo do céu”.

[2] RB 2,7; RB 2,10; RB 2,16; RB 3,6: RB 3,10; RB 4,2; RB 5,1; RB 7,2; RB 8,4; RB 10,4; RB 10,8; RB 12,1.

[3] Cf. Lc 18,1.

[4] Carta aos Fiéis  (2° Recensão) 21; RnB 22, 27.29

[5] Cf. também  Admoestação 15: FF 164; Admoestação 13: FF 162; Palavras de Exortação: “Ouvi, Pobrezinhas” 5: FF 263/1.

[6] Admoestação 9: FF 158, Carta aos Fiéis (2° Recensão) 38: FF 196, Regra não Bulada 16,11: FF 45; 22,1: FF 56.

[7] Cf. RB 5,3-5

[8] CCGG Art. 79 § 2.

[9] RB 10, 5-6.

[10] RB 3, 10-11.

[11] CCGG Art. 87 §2.

[12] CCGG Art. 12 §1.

[13] RB 7, 1.

Paulo Duarte
secprov@ofm.org.pt
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