Espiritualidade

Uma Espiritualidade para hoje

 

Viver o Evangelho

«Depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, ninguém me ensinou o que devia fazer; mas o próprio Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelho», assim escreve Francisco no seu Testamento, ao relembrar os inícios da sua Ordem.
Na Regra que deixou aos seus seguidores convida-os a seguir o caminho por ele empreendido, fixando sempre os olhos no Evangelho. Assim escreve, logo no início da Regra: “A Regra e Vida dos Irmãos menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade” (2 R 1,1). Também a Regra de Santa Clara repete literalmente. “A forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres, que S. Francisco instituiu é esta: ‘Observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade’” (RCl 1, 1-2). A Regra da Ordem Franciscana Secular insiste na mesma afirmação: “A Regra e vida dos Franciscanos Seculares é esta: Observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo os exemplos de S. Francisco de Assis, que fez de Cristo o inspirador e centro da sua vida, para com Deus e para com os homens” (ROFS n. 4).
Para Francisco, porém, o Evangelho não é um livro, mas a Palavra feita carne; é a Pessoa de Jesus Cristo. Antes de ser uma regra moral a observar, é vida, presença mobilizadora, é caminho de identificação a trilhar apaixonadamente. A vocação nele contida, antes de ser forma de vida, é enamoramento, apaixonamento por Jesus.

A partir deste regresso em intensidade ao Evangelho, S. Francisco configurou a sua vida e a “forma de vida” que propõe aos seus seguidores, num conjunto de textos centrais, que aparecem com mais frequência nos seus escritos:
– Relatos de vocação e seguimento (Mt 16, 24; 19, 16-29; Mc 10, 17-27; Lc 9, 1-6; 9, 23-29; 18, 13-27.
– Relatos de missão (Mc 8, 34-38; Mt 16, 24-28; Lc 9, 23-25; Jo 12, 25-26, 15,20)
– Relatos das bem-aventuranças e sermão da Montanha (Mt 5, 1 – 7, 29; Lc 6; 20-26).

 

Porque canta o pássaro?

Encontro pessoal com Jesus Cristo: – Tudo começa aqui. O franciscanismo não é, primariamente, uma organização ou função, mas um encontro pessoal. Não um meio ou instrumento, mas uma relação pessoal. Primeiro que tudo, está o enamoramento. O próprio seguimento não é uma função, mas dinamismo de amor: configurar-se com Jesus… não por interesse, mas por amor, para ser parecido com o Amado. A prioridade do enamoramento é essencial, quer para a vida de cada um, quer para a vida comum e o próprio apostolado franciscano. Este não é um meio, mas o fruto. Mesmo que não houvesse mundo nenhum a converter ou a santificar, o franciscano seria sempre apóstolo, porque a boca fala do que vai no coração (2 Cor 4,13).
Vem a propósito o conto que ANTHONY DE MELLO propõe no seu livro “O canto do pássaro”. Depois de o mestre afirmar que Deus é Incognoscível, os discípulos perguntaram: “Então porque falas tanto sobre Ele?” O Mestre respondeu: “E porque canta o pássaro? O pássaro não canta porque tenha qualquer afirmação para fazer. Canta porque tem um canto no coração”. A missão e ação franciscana não é motivada, em primeiro lugar, pelas necessidades exteriores, mas brota espontânea da música que nos vai no coração. Mais do que um “exercício” ou “atividade”, é um “estilo” e deveria ser uma arte.
Uma arte enraizada em Jesus que está bem retratada nas Florinhas de S. Francisco, de onde retiramos o episódio do “sermão às avezinhas”:
“Indo a caminho para uma pregação, vendo um bando de pássaros, Francisco disse aos companheiros: “Esperai aqui por mim, que eu vou pregar aos meus irmãozinhos pássaros. Entrou no campo e começou a pregar aos pássaros que estavam no chão… E imediatamente os que estavam pelas árvores vieram para junto dela, e todos juntos permaneceram quietos. Até que Francisco acabou a pregação, e só depois que lhes lançou a bênção é que partiram (…)”.
A substância da pregação de S. Francisco foi esta:
Avezinhas minhas irmãs, mui gratas deveis estar a Deus, e sempre e em todos os lugares o deveis louvar, porque vos concedeu um vestido dobrado e tresdobrado e porque conservou vossos pais na arca de Noé, a fim de que não acabasse no mundo a vossa espécie. E demais lhe deveis estar obrigados pelo ar, que vos destinou; além disso, vós não semeais nem recolheis, mas Deus vos nutre e vos dá os rios e as fontes para beberdes, e vos dás os montes e os vales para refúgio e as altas árvores para fazerdes ninhos; e conhecendo que vós não sabeis fiar nem coser, vos veste a vós e a vossos filhos. Grande é, pois, o amor que vos tem o Criador, que tantos benefícios vos faz, por isso, minhas irmãzinhas, guardai-vos do pecado da ingratidão, e esforçai-vos sempre por louvar a Deus.
Tendo o santo dito estas palavras todas aquelas aves começaram a abrir o bico, a estender o pescoço, a alargar as asas, e a inclinar, com reverência, a cabeça até ao chão, mostrando, com sinais e cantos, o muito prazer que lhes davam as palavras do Santo Padre. (…) Finalmente, concluída a pregação, fez sobre eles o sinal da cruz, e deu-lhes licença para se irem embora. E todos aqueles pássaros se levantaram no ar, soltando maravilhosos cantos, e se dividiram em quatro grupos segundo a cruz que S. Francisco tinha feito: um grupo voou para o Oriente, outro para o Ocidente, o terceiro para o Meio Dia, e o quarto para as partes do Aquilão, e cada bando seguia cantando maravilhosamente, com isto significando que, assim como S. Francisco, porta bandeira da cruz de Cristo, lhes tinha pregado e tinha sobre eles formado o sinal da cruz, segundo a qual se repartiram cantando pelas quatro partes do mundo, assim também a pregação da Cruz de Cristo, renovada por S. Francisco, se devia estender por meio dele e de seus frades a todo o mundo. E estes frades, à semelhança das aves, nada possuindo como coisa própria, deviam confiar a sua vida somente à Providência de Deus. (Florinhas XVI, Fontes Franciscanas, p. 1177).
Toda a vida franciscana passa por esta escuta consciência de sermos no mundo os “jograis de Deus”, e pela descoberta de sermos seus filhos muito amados. Daqui nascem a pobreza, a menoridade, a fraternidade, a paz, o respeito pelo outro, a liberdade, a alegria.

 

Notas de uma Espiritualidade para hoje

Da experiência de S. Francisco, isto é, da sua vivência enamorada do mistério do Pai e de Cristo, brotam as linhas da espiritualidade franciscana que, por serem evangélicas, não são apenas para os franciscanos:

 

– Louvado Sejas, Meu Senhor – A gratidão:
Voltemos ao texto acima citado, onde Francisco descobre e enumera os motivos de gratidão na vida dos passarinhos. Fala do vestido dobrado e tresdobrado, isto é, de três ordens de roupa: por fora, uma, feita de penas coloridas para alardearem sua beleza; depois, outra, de penas mais fortes, para os proteger do frio; e ainda uma terceira, de penugem fina, como camisola interior, para que as penas grossas não lhes magoem a pele. Fala dos cuidados de Deus, por ocasião do dilúvio, para que não desaparecesse a sua espécie; e dos rios e das fontes, onde podem beber; e das cearas, onde podem comer; e das árvores frondosas para esconderem os ninhos; e de todo o céu azul para voarem. E, a concluir, adverte: ”minhas irmãzinhas guardai-vos do pecado da ingratidão e esforçai-vos por sempre louvar a Deus”. “Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus”. O pobre em espírito é o homem agradecido, que não se considera construído por si mesmo, mas criado e sustentado pelo Pai. Que diferente seria a vida humana!… O cristão deveria ser assim. Iluminado de gratidão, para depois a irradiar à sua volta.
Francisco louva o Altíssimo, especialmente pela sua bondade (1R 23,9). É este o tema mais presente, tanto na sua oração de louvor como no modo de ver os irmãos e a criação. Não só faz do Sumo Bem o centro do seu amor e do seu prazer, como também se regozija ao descobrir quanto há de bom e amável em si mesmo, em cada irmão e em cada criatura. Despojado do seu homem velho perante o bispo de Assis, não tarda a começar a oração de louvor (1C, 16). E o mesmo acontece, quando vence a sua repugnância e vai beijar o leproso (LM 1,5-6). A bondade de Deus espelha-se, em primeiro lugar, no rosto do irmão, seja qual for a sua condição ou situação.
Se somos fruto do dom, estamos vocacionados para a doação.

 

– Viver sem próprio – Pobreza franciscana:
A própria pobreza franciscana nada tem a ver com “miséria” ou pequenez obrigada. Ser pobre é ser agradecido. É saber que existo, porque Deus me ama. Sou um beijo permanente de Deus… “Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus”. É viver nesta dinâmica do Reino, onde a felicidade não depende do ter, mas do ser. A felicidade de saber-se amado. Em casa do Pai.
Para o franciscano tudo é dom: Dom de Deus e dom dos homens… As coisas que se recebem não são esmolas nem conquistas, mas dons, prendas, presentes dados por Deus e também pelos homens. Mesmo, quando retribuição do meu trabalho; o meu trabalho não é servidão, imposta pela necessidade de ganhar o pão de cada dia, nem obsessão de “ganhar”, mas é um modo de participar da partilha de Deus e da sua Criação, é expressão da minha liberdade criativa e modo de contribuir para a felicidade dos homens. A minha própria existência é feita de amor.
No seu Testamento ordena aos seus irmãos que trabalhem, mas não pela ganância de acumular: “Eu trabalhava com minhas mãos e quero ainda trabalhar; e firmemente quero que os irmãos trabalhem em mister honesto, não pela cobiça de receber o preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e repelir a ociosidade” (T 20-21). Hoje S. Francisco diria: “Não pela ganância do preço do trabalho, mas pela alegria de contribuir para a felicidade do mundo”.

 

– Ser irmão – Fraternidade franciscana:
Francisco vê na Encarnação do Verbo de Deus a raiz e fonte da nova relação entre os homens. Cristo veio-nos, finalmente, mostrar como o Amor trinitário é gerador de laços e relações novas. Em Cristo, Deus torna-se nosso irmão: “Rodeava de um amor indizível a Mãe de Jesus, por ter feito nosso irmão o Senhor de toda a majestade” (2 C 198). Mais ainda: em S. Francisco a fraternidade tem um matiz maternal. Diz na Regra Bulada: “pois se a mãe ama e nutre com tanto amor a seu filho carnal, com quanto mais amor e solicitude não deve cada um amar e ajudar seu irmão espiritual” (2 R 6, 8). Isto revela algo que confirma, de novo, o nosso pensamento: a primazia do enamoramento sobre a função. A dinâmica da fraternidade não é funcional e utilitarista, mas essencialmente relação interpessoal… de matiz amoroso. E esta forma de relacionamento não é reservada aos irmãos entre si, mas deve estender-se às outras pessoas e aos quatro cantos do mundo, abarca todos os homens, independentemente da sua raça ou religião.
Por outro lado, na espiritualidade franciscana, “irmão” não é um simples apelido, nem exprime um sentir afetivo dos religiosos uns com os outros, mas é uma nervura estrutural que determina o ser do grupo e o modo que configurará todo o seu agir. A Fraternidade franciscana é uma experiência de comunhão de irmãos que querem viver, não uns ao lado dos outros, caminhando para o mesmo fim e ajudando-nos a atingi-lo, voltados uns para os outros para mutuamente nos amarmos, como o Senhor mandou e nos deu exemplo e mandamento. Uma das caraterísticas essenciais do grupo franciscano é a igualdade que, em vez de anular as diferenças, as promove como enriquecimentos.

 

– “E sejam menores!” – Menoridade evangélica:
Afirma o seu mais fiável biógrafo que: «foi ele, com efeito, quem fundou a Ordem dos Irmãos Menores e lhe conferiu esse nome nas circunstâncias que seguidamente se referem. Estavam para serem escritas na Regra as palavras “e sejam menores”, mas ao proferir estas palavras, naquela mesma hora, disse: “Quero que a nossa fraternidade se chame “dos irmãos menores”» (TOMÁS DE CELANO, Vida Primeira 38; cf. 1R 5,9-12).
Num tempo em que a sociedade estava hierarquicamente estratificada e as diferenças entre os “maiores” e os “menores” eram abissais e intransponíveis, Francisco quis operar também uma “revolução” social, a partir do Evangelho. Na verdade, esta “revolução” nasce da sua descoberta do Pai. Se Deus é nosso Pai, não é só “Pai do Céu”, mas também Pai na terra, pai de todos os homens. Um Pai que faz de mim um filho (menor) e de todos nós irmãos. Daqui brotam as atitudes de confiança e dependência, o espírito de infância, o encanto e gratidão, a ternura e cortesia, a generosidade sem limites, a felicidade do coração, a alegria de viver para narrar e cantar as obras do Pai. Tudo isto constitui a pobreza franciscana, que não consiste só, nem tanto, na escassez de bens materiais, mas no conjunto destas virtudes.
E quando os seus irmãos perguntaram ao Pobrezinho de Assis o que deveria ser o “verdadeiro frade menor”, respondeu:
«Aquele que tiver a vida e as qualidades destes santos frades: a fé de Frei Bernardo, a simplicidade e a pureza de Frei Leão, a cortesia de Frei Ângelo, o aspeto gracioso e o senso natural com a fala bonita e devota de Frei Masseu, a mente elevada em contemplação de Frei Egídio, a virtuosa e constante oração de Frei Rufino, a paciência de Frei Junípero, o vigor corporal e espiritual de Frei João das Laudes, a caridade de Frei Rogério e a solicitude de Frei Lúcido» (Espelho da Perfeição, 85).
Isto é, a Fraternidade franciscana, longe de ser a congregação dos perfeitos ou seleção dos melhores, é a conjugação das diferenças, onde se exaltam as diferenças e qualidades de cada um, e é destas que resulta a “fraternidade verdadeira”.

 

– Olhai as aves do céu! – Ser peregrino e hóspede:
Existir é ser hóspede, hóspede da divina Providência e da amizade dos homens. Não é uma fantasia. Francisco gosta de citar estes passos do Evangelho: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã… com o que haveis de comer…. “com o que haveis de vestir…”, “olhai as avezinhas do céu…”, “olhai os lírios do campo…” (Mt 6, 25-34; Lc 12, 22-31). “As raposas têm tocas, as aves do céu têm ninhos… o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 58). A mesma doutrina em S. Francisco. Logo no princípio da Regra Bulada: “vivendo em obediência, sem próprio e em castidade”. Não diz “vivendo em pobreza”, como era costume, mas “sem próprio”, sem se apropriar do que não nos pertence, nem querer ser donos daquilo que é de Deus. E no cap. 6 da Regra: “os irmãos nada tenham de seu, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma, mas como peregrinos e estrangeiros, vão pelo mundo servindo a Deus em pobreza e humildade…”. E mais explicitamente no Testamento: “Acautelem-se os irmãos de receber igrejas, pobrezinhas moradas, ou qualquer outra coisa, que para eles seja edificada, se não forem conformes à santa pobreza. Hospedem-se nelas como peregrinos e estrangeiros… (T 24). Este conceito de ser hóspede é lindo; é sentir-se dependente da bondade hospitaleira dos benfeitores e ver esta bondade em todo o relacionamento entre os homens.

 

– Instrumentos de Paz e Bem ou o Espírito de Assis:
O carisma do Santo de Assis, por ser evangélico, é também uma mensagem de verdadeira paz. Pregou e ensinou a pregar a paz. E promoveu-a com gestos concretos. Muitos haveria que lembrar, mas evocamos apenas dois deles: contam as fontes franciscanas que, pelo ano 1225, entre o Bispo de Assis e o podestá da cidade “nasceu uma feroz contenda”, ao ponto de o primeiro ter excomungado este último. Francisco, triste e indignado sobretudo por ver que ninguém fazia algo para restabelecer a paz entre os dois, decidiu intervir. Envolveu então seus irmãos para que convidassem Bispo e Podestá e muita gente da cidade para celebrarem um encontro de reconciliação. Compôs, para essa circunstância, mais uma estrofe do seu Cântico do Irmão Sol que reza assim: “Louvado sejas tu, meu Senhor, por quem perdoa por teu amor; por quem sofre provações e doença; feliz quem as suporta em paz, porque será por ti, Altíssimo, coroado!” Deu-se o encontro, em que os frades cantaram esta estrofe e a paz foi restabelecida. Graças à poesia espiritual de Francisco e à música da fraternidade, a praça de Assis tornou-se um palco de paz.
O segundo gesto icónico remonta ao ano 1219. Vamos celebrar agora os 800 anos do primeiro diálogo sincero e desarmado entre o islão e o cristianismo. Porque não lhe agradava o espírito de cruzada anti-islão, que então vigorava na Europa, Francisco quer ajudar a Igreja a não responder à violência com violência. Já antes, em 1216, quando o papa Inocêncio III se deslocou de Roma a Perusa, com a intenção de promover a Cruzada e anunciar, para breve, o fim da religião islâmica, Francisco tentou convencê-lo de que este não era o caminho querido por Deus. O insucesso de tentativas como esta não o demoveram da sua missão alternativa. Em setembro de 1218 chegou a Damieta o Legado Pontifício, Cardeal Pelaio Galvão (1165-1232), a fim de dirigir a Cruzada. Ao chavão repetido muitas vezes por este e outros: “O Islão que nasceu com a espada e se difundiu com a espada, deve agora ser destruído com a espada”, o Pobre de Assis contrapõe o anúncio desarmado pela palavra e pelos gestos. Com tal intento, juntou-se, em junho de 2019, aos cruzados, com alguns frades, de entre os quais Fr. Iluminado de Arce, que tinha alguns conhecimentos de árabe falado. Chegaram a Damieta em agosto, quando estava iminente uma violenta batalha. Correu então o Santo, enfrentando os cruzados, tentando persuadi-los a não avançarem para um combate, que se adivinhava desastroso. Escarnecendo dele, os cristãos avançaram para a peleja e sofreram pesada derrota. No meio desta e de outras guerras que se lhe sucederam, em novembro de 1219, Francisco, acompanhado de Frei Iluminado, decide dirigir-se ao Cardeal Legado a pedir licença para falarem ao Sultão. Não tendo obtido o apoio do Cardeal, lá foram os dois fradinhos, por própria conta e risco, ao encontro do Sultão. Os próprios biógrafos consideram temerária a atitude do Poverello, mas a sua coragem, assente na fé e caridade evangélicas, acabou por ser premiada. Foi o primeiro verdadeiro “encontro”, olhos nos olhos entre cristãos e muçulmanos. Depois de ouvir Francisco, o Sultão responde: «Senhores, os defensores da lei mandam cortar-vos a cabeça. Mas eu estou contra e não vos matarei. Dar-vos-ei um salvo conduto para não perderdes a vida e eu salve a minha alma». A assim puderam continuar no acampamento dos sarracenos estes dois hóspedes vindos de Assis. Impressionado com a grandeza de alma de Francisco, ao despedir-se, o Sultão dirigiu este pedido ao ao fundador dos Menores: «Roga por mim, para que Deus se digne revelar-me a lei e a fé que mais lhe agrada» (TIAGO DE VITRY, Carta 6).
Graças a gestos como este, Francisco e os seus frades foram sempre os preferidos para viver e conviver com o Islão, nomeadamente nos Lugares Santos, partilhados pelas Religiões Abraâmicas.
Episódios como este têm inspirado os Papas, desde São João Paulo II, a promover, em Assis, ou sob o nome de assis iniciatvas de diálogo inter-religioso a que se tem dado o nome de “Espírito de Assis” e que os franciscanos continuam a promover por todo o mundo.

 

– O Cântico das Criaturas ou a verdadeira ecologia:
“As irmãs aves louvam o seu Criador. Ponhamo-nos no meio delas e cantemos também nós ao Senhor” (LM 8,9). Esta frase manifesta bem a atitude de Francisco perante as criaturas: põe-se “no meio delas”, como mais uma, para entoar com elas um único cântico, e louvar a Deus em uníssono com elas. Não utiliza a natureza como senhor despótico, nem reflexiona sobre ela como profundo teórico. Reconhece que “todas as criaturas que há debaixo do céu, cada uma delas a seu modo, serve e reconhece e obedece ao seu Criador” (Ex 5,2). Por isso não se põe simplesmente ao lado delas, e menos ainda por cima delas, mas no meio delas. Sentindo-se um elemento dessa grande família cósmica, Francisco fala com elas, comunica-lhes os seus sentimentos (1C 58) e une-se afetuosamente à sua bela sinfonia de louvor. Também pede aos irmãos que façam coro com o louvor da criação e convidem toda a gente a unir-se a esse cântico: “Que são, com efeito, os servos de Deus senão uns jograis que devem mover os corações a fim de os encaminharem para as alegrias do espírito?” (LP 83).
A sua perspetiva é teocêntrica, pois todas as criaturas, animadas e inanimadas, são para ele um dom que Deus confiou ao homem. E ama-as pelo “amor que, acima de tudo, dedica ao Criador” (3C 36). Nelas e com elas louva o “omnipotente, santíssimo e supremo Deus, Pai santo e justo, Senhor do céu e da terra” (1R 23,1). Para ele, a criação está incluída dentro do plano divino da salvação. Com efeito, todas as coisas foram criadas em Cristo, e é em Cristo que têm a sua consistência. Também Francisco trazia sempre “Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus sempre presente em todos os seus membros (1C 115). A dimensão transcendente do Criador move-o ao respeito e à colaboração, pois, como diz o Papa Francisco, “somos chamados a ser instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta seja o que ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz, de beleza e de plenitude” (55).
Francisco de Assis admira a natureza, mas a sua admiração não se reduz a um sentimentalismo poético e vazio de sentido. Quando canta a beleza da criação, sabe apreciar o simbolismo expresso pelas criaturas, mas sobretudo o valor das mesmas, porque em cada uma ele percebe a presença viva do Criador: “Em todas as criaturas reconhecia, amava e louvava Aquele que as tinha feito” (Lm 3,6). As criaturas falam da bondade do Criador, pois todas são fruto do seu amor e estão naturalmente orientadas para uma comunhão amorosa. Por isso rejubila “ao contemplar nelas a sabedoria do Criador, o seu poder e a sua bondade” (1C 80). A bondade intrínseca da natureza é para ele muito mais relevante do que a mancha do pecado original, como implicitamente dão a entender os seus biógrafos ao salientarem a sua boa disposição para com todas, mesmo para com as insensíveis:
“Começou a encorajar com muito empenho todas as aves, todos os animais e todos os répteis, e até todas as criaturas insensíveis, a que louvassem e amassem o seu Criador, dado que verificava constantemente como todos esses seres lhe obedeciam quando ele invocava o nome do Senhor” (1C 58).
Todas as criaturas, espirituais e corporais (1R 23,2), “são um reflexo do Altíssimo” (CC 4). São boas porque são amadas; chamadas gratuitamente à existência por Aquele que é “o bem, todo o bem, o soberano bem” (LD 3). Esta experiência de gratuidade, que Francisco experimenta em si mesmo, faz com que ele se sinta parte da grande família cósmica, e evita qualquer tipo de apropriação ou de domínio. Sabe que é pobre, mas infinitamente amado.
Por isso o franciscano não se serve egoisticamente das criaturas, mas também não se deixa apanhar por elas, antes reconhece que tudo é expressão do amor divino e lhe está subordinado. Também não cai em nenhum tipo e panteísmo. Fala das criaturas para se referir ao Criador, e a todas dirige o convite de se unirem a Ele num único cântico de louvor: “Começou a exortar com todo o empenho a todas as aves, a todos os animais e a todos os répteis, e até mesmo a todas as criaturas insensíveis, a que louvassem e amassem o Criador”.
O Papa Francisco quis, oito séculos depois, lembrar o Cântico das Criaturas de S. Francisco, na sua Laudato Si’. Mas quis, sobretudo, em tempos de dramática preocupação com o futuro do Planeta e da Humanidade, recordar a visão profética de S. Francisco que tratava todas as criaturas por “irmãs”. O primeiro requisito da “verdadeira” ecologia proposta por ambos os Franciscos é a conversão espiritual: “A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais aos problemas que vão aparecendo devido à degradação do ambiente, ao esgotamento das reservas naturais e à contaminação. Deveria ser, além disso, outra forma de ver, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que ofereçam forte resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (Laudato Si’ 111). A segunda nota, é assim exposta pelo Papa: “Em Francisco pode-se verificar até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o compromisso com a sociedade e a paz interior” (Ibid. 10).
Desde que saboreou o Sumo Bem que é Deus, Francisco vê tudo do ponto de vista de Deus, e em Deus abraça todos os seres como irmãos. Por isso, mais do que uma ética que fale de obrigações e deveres, Francisco apresenta uma mística, uma espiritualidade ecológica, um modo holístico de se sentir em comunhão de vida com todas as criaturas. O centro deixou de ser o seu próprio “eu” e passou a ser o Altíssimo. Sem essa transformação interior e integral não teria sido possível a sua tão saudável relação com todas as criaturas nem o profundo humanismo que o carateriza. Uma vez experimentado o amor divino, abandona toda a pretensão de domínio utilitarista, sente-se gozosamente em harmonia com a criação, e é unido a ela que louva o “Omnipotente e bom Senhor”. Muito antes do Vaticano II, Francisco de Assis já tinha compreendido que “a criatura sem o Criador desaparece” (GS 36).
Não obstante a centralidade teológica de toda a espiritualidade de S. Francisco, ele continua a inspirar o nosso mundo, inclusive os pensadores não “religiosos”. Apesar deste laicismo militante, Francisco de Assis continua a ser reconhecido universalmente como modelo inspirador para todos os que procuram viver em relação harmónica com todas as criaturas. “Não são apenas os cristãos que o apreciam, mas também muitos outros crentes e até mesmo pessoas que sem professarem nenhuma religião, se reconhecem nos seus ideais de justiça, de reconciliação e de paz” (João Paulo II). A revista Time Magazine, em 1992, declarou-o como um dos homens mais influentes do segundo milénio. O Papa Francisco afirma que o Pobrezinho de Assis “o santo patrono de todos os que estudam e trabalham em torno da ecologia, é amado também por muitos que nem sequer são cristãos” (ibid. 10). O filósofo Max Scheler define-o como “um dos maiores escultores da alma e do espírito na história da Europa”:
“Na história do Ocidente nunca mais voltou a conseguir-se uma expressão das potencialidades mais simpáticas da alma como a que se verificou em São Francisco. Nunca mais também se conseguiu uma repercussão tão profunda dessas potencialidades na religião, na erótica, na ação social, na arte e na ciência” […]. “E consegue mesmo transmitir a outros o sentimento especificamente cristão do amor a Deus como Pai, ao próximo como irmão, e até a toda a natureza infra-humana” (M. SCHELER, Esencia y formas de la simpatía, Buenos Aires 1957, 119-119 e 125).
Lynn White, muitas vezes citado por acusar a tradição judeo-cristã de ter provocado a crise ecológica, reconhece que Francisco de Assis é, nessa tradição, uma exceção e exemplo para a humanidade inteira, na medida em que conseguiu viver, em estreita relação de irmão, com todos os seres. Sem essas relações afetuosas e profundas – acrescenta o autor – não será possível superar a crise ecológica, e por isso propõe Francisco como “patrono dos ecólogos”:
“O maior revolucionário espiritual da história do Ocidente, São Francisco, propôs uma coisa que no seu entender era uma visão alternativa da natureza e da sua relação com o ser humano: tentou substituir a ideia da autoridade ilimitada do homem sobre a criação por uma ideia de igualdade entre todas as criaturas, incluindo o próprio homem” (L. WHITE, Las raíces históricas…, 86).
Acolhendo um consenso generalizado, João Paulo II declarou em 1979 Francisco de Assis “Patrono dos ecologistas” (Bula Inter Sanctos, 29-09-1979) e louvou o seu olhar contemplativo, próprio de “quem não pretende apoderar-se da realidade, mas acolhe como um dom, descobrindo em cada ser o reflexo do Criador, e em cada pessoa, a sua imagem viva” (EV 83).
“São Francisco de Assis oferece aos cristãos o exemplo dum respeito autêntico e profundo pela integridade da criação. Amigo dos pobres, amado pelas criaturas de Deus, convidou todos os seres – animais, plantas, forças naturais, inclusivamente o irmão Sol e a irmã Lua – a honrarem e louvarem o Senhor. O Pobre de Assis dá-nos o testemunho de que, estando em paz com Deus, podemos dedicar-nos melhor a construir a paz com toda a criação, que é inseparável da paz entre os povos” (23 JMP 16).

 

– Uma Alegria que voa ou a perfeita alegria:
“E todos aqueles pássaros se levantaram… cantando maravilhosamente”. O enamoramento por Jesus e a gratidão para com o Pai produziam no coração de Francisco uma incontável capacidade de encanto que o fazia ver beleza em todas as coisas. Admirável a frequência com que Francisco vê Jesus nas criaturas e objectos, mesmo nos mais distantes de tal simbolismo. Essa alegria torna os passarinhos comunicativos. Alegria vem do adjetivo “alacris”, alegre, e “alacris” vem do substantivo “ala” que significa asa. Alegria é um sentimento que faz voar. Os pássaros voaram para os quatro pontos cardeais. Também os franciscanos deveriam voar. Também os homens deveriam voar, não para explorar os recursos económicos de cada continente, mas para levar a todos os povos e raças a felicidade de serem amados. Que linda globalização!…

 

Cântico das Criaturas
Cântico do Irmão Sol

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
a ti o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.
A ti só, Altíssimo, se hão de prestar
e nenhum homem é digno de te nomear.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
Especialmente, o meu senhor irmão Sol, o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, ele é imagem.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua
e as estrelas:
no céu as acendeste, claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento,
pelo ar, pelo céu nublado ou limpo, por todo o tempo,
pelo qual dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil, humilde, preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite: ele é belo, jucundo, robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a terra-mãe,
que nos sustenta e governa, e produz variados frutos,
com flores coloridas e verdura.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que por teu amor perdoam
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados aqueles que as suportam em paz,
pois por Ti, altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal,
à qual nenhum ser vivo pode escapar.
Ai daqueles que morram em pecado mortal!
Ditosos os que cumpriram a tua santíssima vontade,
porque a segunda morte não lhes fará mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
dai-lhe graças e servi-o com grande humildade.