O FRANCISCANISMO

O FRANCISCANISMO

O franciscanismo no início foi um encontro, um fulgor. Francisco de Assis, jovem de bonitas esperanças da média burguesia italiana de duzentos, como dizem os italianos, depois de ter posto em crise o credo da sua família e a mentalidade corrente do seu tempo, «encontrou» Jesus Cristo[1]. Este encontro impôs a Francisco – que nele tinha já posto as premissas – uma radical mudança de vida: uma conversão.

  1. As origens: Francisco de Assis e a sua intuição

No princípio tratou-se então de uma experiência totalmente íntima e pessoal, uma vivência que, por outro lado, muitos antes de Francisco tinham vivido de modo exemplar[2].

O itinerário da sua conversão – com base no Testamento e na narração dos primeiros biógrafos – é quase dito. No limiar da maturidade, as suas ambições juvenis, os seus sonhos de glória cavaleiresca, a sua sede de brilho da fama. Tudo foi o contrário! Fez-se órfão, renunciando à paternitas carnalis, fez-se pobre e ignorante. Depôs toda a situação de privilégio, aceitando um status social nulo[3]. Colocou-se à margem da vida religiosa reconhecida, dirigindo-se para uma experiência eremítica de oração e de penitência. Numa palavra, fez-se «menor», mais pequeno, servo dos leprosos, isto é, paradigmaticamente, dos marginalizados, servos dos pequenos da sociedade do seu tempo.

Esta foi a base do seu recomeçar. Deixou-se refazer por Deus, metendo-se no seguimento dos passos de Jesus Cristo[4]: os passos daquele Cristo que encontrou «vivo» em S. Damião e no leproso. Fez norma da sua vida a leitura sine glosa do Evangelho. Esta literalidade teria guiado todas as escolhas sucessivas de Francisco.

  1. O movimento franciscano

Quase certamente Francisco não pensou nunca de dar vida a um movimento religioso, mesmo que de longe semelhante aos muitos movimentos que se formaram no século precedente e que continuavam a proliferar também nos seus tempos.

E não quer de modo algum organizar a sua vida sobre modelos pré constituídos. Não creio que Francisco olhasse a qualquer coisa em modo particular, como dar vida a um movimento ou a uma ordem ou a aconselhar práticas e devoções específicas. A missão apostólica é anúncio de uma verdade que se encontrou, é testemunho e mensagem. Este aspecto é insistentemente sublinhado em todos os textos de Francisco chegados a nós, que é difícil pensar fosse diferente nos inícios. Os primeiros companheiros vieram por si sós, fascinados por aquele pequeno homem.

De resto «poucos fundadores tiveram a ideia de criar uma ordem».

Francisco preocupou-se exclusivamente em viver com profundidade e com rigor a experiência do encontro com Jesus e com o seu Evangelho, sem colocar-se outros fins senão este. Francisco não tende a mudar nada explicitamente da realidade social externa, mas só a chamar os indivíduos a uma conversão interior que, se verdadeira e total, por si leva a uma mudança de vida. Aliás, para Francisco a mudança de vida é pouco importante; quando a realidade é a realidade interior, a outra serve-a, e é importante só porque a serve e lhe permite exprimir-se.

A identidade entre o fim e o meio – o seguimento de Cristo segundo o Evangelho – dava integridade, solidez e fascínio à experiência franciscana. Como todos os homens profundamente mergulhados na acção e na vida, Francisco não se deu conta de quanto rica e evocadora fosse a experiência que estava conduzindo.

Foi por uma atracção espontânea que indivíduos muito sensíveis àquela novitas decidiram unir-se a ele. Veio um grupo de convertidos, viris poenitentiales, que viram encarnadas as expectativas do seu tempo e das suas pessoais aspirações na palavra e no exemplo do jovem de Assis.

  1. Os inícios: Francisco e os seus companheiros

A personalidade de Francisco ficou no centro da aventura franciscana. Ele foi o promotor, o inspirador e o protagonista das sucessivas escolhas do grupo. Mas, do momento em que acolhe como irmãos alguns que quiseram unir-se a ele, condescendeu também a que o seu projecto inicial se transformasse em projecto comunitário. Ainda que não se discutisse a liderança, não se sentiu nunca aí o soberano; antes pelo contrário, mantém-se na condição de homo simplex, consciente que era Deus o verdadeiro único pastor (cfr. 2Cel 158).

Com os companheiros Francisco partilhava as experiências de vida, a missão de pregador itinerante; promovia, imitando a narração evangélica (Lc 9,1-10), ocasiões de encontro com os frades. Nestas circunstâncias ele manifestava aos companheiros os seus propósitos e o que o Senhor lhe tinha revelado (cfr. 1Cel 30). Participava também aos companheiros as suas perplexidades, não se fiando nunca de si mesmo (cfr. 1Cel 35); e com eles rezava e procurava a vontade de Deus.

Em qualquer modo deveria sacrificar a sua figura – mas tudo isto entrava na minoritas – em vantagem do movimento. De facto, nos testemunhos dos contemporâneos, a figura de Francisco de Assis passa quase despercebida, ou então tem um papel absolutamente de segundo plano, em relação ao grupo religioso que nele se inspira. Buoncompagno da Signa, as cartas de Giacomo da Vitry, a crónica de S. Martinho de Tours, a de Monte Sereno, Burcardo di Ursperg, parecem ignorar quase completamente Francisco. Será somente com a canonização (1228) que o interesse das crónicas se deslocará para a pessoa do santo. As biografias depois exaltarão a figura até a assemelhá-lo a Cristo, como alter Christus, até a atribuir-lhe um papel específico na historia salutis, como o «Anjo do sexto selo», o anjo apocalítico destinado a inaugurar os últimos tempos.

Sinteticamente podemos reconduzir a três momentos essenciais a experiência do socius de Francisco:

– a) Discipulado: uma fase de admiração incondicional pela estatura moral e a personalidade de Francisco;

– b) Imitatio: é consequência da decisão de seguir-lhe o exemplo e de experimentar a sua vida;

– c) Vita minorum: depois da experiência, a escolha desta vida: o frater é já em grau de apreciá-la por si autonomamente, o sentido pleno deste estilo de vida.

Francisco não suportava ter dependentes, súbditos; para ele existiam apenas fratres. E isso mesmo eram os seus companheiros. Confiava neles. Não tinha dificuldade em enviá-los dois a dois, em missão apostólica, por longo tempo, sem colocar-se tantos problemas de organização e de disciplina. Até ao fim teria acreditado infinitamente mais na força do exemplo do que na do direito – não obstante que esta sua atitude suscitasse perplexidade dentro e fora do movimento, como veremos mais adiante.

  1. Configuração da vida da primitiva comunidade franciscana

Francisco e os companheiros não partiram de um ideal pré-constituído, nem se referiram a alguns propositum vitae precedentes. Nenhuma das experiências religiosas precedentes e contemporâneas tinha para eles a mesma autoridade do Evangelho de Jesus. E Francisco não aceitou nunca iniciar o seu movimento na direcção do monaquismo tradicional. Conheciam esta única via, por isso, dóceis à acção de Deus, em contínua, intransigente verificação, chegaram passo a passo a um estilo de vida totalmente original, sempre mais centrado sobre a «letra» do Evangelho.

A nova comunidade fundava-se sobre alguns «princípios formais internos» (assim definiu Esser):

  1. a) Fazer penitência
  2. b) «Vita» segundo o Evangelho
  3. c) Pregação apostólica itinerante
  4. d) Pobreza colectiva
  5. e) Vida de dependência do exterior
  6. f) Fraternidade

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[1] A afirmação que este encontro é «histórico» pode deixar perplexos os próprios historiadores. No entanto, é assim enquanto Francisco o sentiu como tal e, com ele, tantos convertidos – como testemunha a milenar história da Igreja.

[1] Os primeiros biógrafos franciscanos põem em paralelo a conversão de Francisco e da Paulo de Tarso e, mais veladamente, a de S. Martinho; cfr. 2Cel 6; 3Comp 6; LM I,3; 2Cel 5.

[1]  O que significa – sociologicamente – que se privou de tudas as bases de aprovação social: a ascendência, a riqueza, o grau e o género de instrução, a utilidade funcional.

[1]  A expressão aparece muitas vezes nos escritos de Francisco: EpFid II, 13; EpLeo 3; EpOrd 51; NonBull I,1; XXII, 2. A Legenda Maior de S. Boaventura segue esta convicção sobre a perfeita imitação de Cristo por parte de Francisco, até ao ponto de o considerar como «alter Christus».

[1]A afirmação que este encontro é «histórico» pode deixar perplexos os próprios historiadores. No entanto, é assim enquanto Francisco o sentiu como tal e, com ele, tantos convertidos – como testemunha a milenar história da Igreja.

[2] Os primeiros biógrafos franciscanos põem em paralelo a conversão de Francisco e da Paulo de Tarso e, mais veladamente, a de S. Martinho; cfr. 2Cel 6; 3Comp 6; LM I,3; 2Cel 5.

[3]  O que significa – sociologicamente – que se privou de tudas as bases de aprovação social: a ascendência, a riqueza, o grau e o género de instrução, a utilidade funcional.

[4]  A expressão aparece muitas vezes nos escritos de Francisco: EpFid II, 13; EpLeo 3; EpOrd 51; NonBull I,1; XXII, 2. A Legenda Maior de S. Boaventura segue esta convicção sobre a perfeita imitação de Cristo por parte de Francisco, até ao ponto de o considerar como «alter Christus».

Paulo Duarte
secprov@ofm.org.pt
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