Encontro com São Francisco

Encontro com São Francisco

Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras nos Exclusivos do Expresso.

Regresso com frequência e espanto à tarde em que, depois de horas a vaguear pelos corredores do Museu Nacional de Arte da Catalunha, contemplando com notável sentido de dever as obras ali expostas, me deparei assombrado com o São Francisco de Assis de Zurbarán.

O que senti só consigo compará-lo ao momento em que, aos dezasseis anos, vi pela primeira vez o meu pai ou a outras experiências, poucas, proporcionadas pela arte:

a imagem aérea de Barcelona em “Tudo sobre a Minha Mãe”, certos versos de Manoel de Barros, uma frase que Malraux escreveu em “A Condição Humana” e que, durante anos, me serviu de guia e que ainda hoje, que já não acredito nela, não me é indiferente.

Epifania é uma palavra adequada para descrever o encontro com aquele homem feito de sombras e luzes, vestes compridas e sombrias, mãos ocultas e olhos virados para cima, também ele à espera, talvez, de uma epifania, da manifestação física do seu Deus. Mesmo assim, anagnórise agrada-me mais. A descoberta súbita e tremenda de um facto, de uma verdade até então ignorada, que se torna decisivo para os acontecimentos posteriores. Ali, de um modo muito diferente do da experiência e de outras leituras e conhecimentos, foi-me revelada uma verdade essencial sobre a mortalidade e a santidade, a de que uma vida santa é eterna e que essa eternidade é terrena.

É uma verdade confusa, concedo. Mas é por ser confusa que a sinto mais verdadeira. E só não seria confusa se, ao fim de todos estes anos, eu tivesse desenvencilhado o novelo do seu mistério, sendo que, nesse caso, seria mais simples, mais comunicável, mas menos verdadeira, irremediavelmente distante do frémito visceral que senti perante a humildade que humilha, aquele despojamento que nos esvazia e nos dá vontade de nos prostrarmos e pedirmos perdão pelos nossos pecados, uma verdade que só pode ser pensada pelos sentidos, só pode ser alcançada pelo instinto.

Jesus disse-nos que tínhamos de nos fazer crianças, louvou os pobres de espírito, exortou os pecadores a virem até ele, e eu, na tarde daquele encontro, era uma criança, um pobre de espírito, um pecador. Não. Minto. Até àquele instante de revelação, eu era um homem, orgulhoso da minha sabedoria, um turista cultural, com aquela mistura de soberba e carência, de satisfação e ignorância que todos os turistas exibem.

Só quando vi o São Francisco de Zurbarán é que essa armadura, frágil e brilhante, se desfez e expôs a minha vulnerabilidade.

Um homem pode viver uma vida inteira à espera de momentos idênticos, momentos que duram pouco, mas cujos efeitos são duradouros, que se elevam do tempo de onde nascem e se furtam às suas leis e aos seus padrões. Podemos treinar a vida inteira e moldar o espírito e beber a cultura e apertar o cilício da erudição para que nos tornemos mais sábios e sejamos capazes de nos aproximar de uma obra de arte e sentir que a compreendemos na íntegra, que não há nela nenhum recanto de sentido que nos seja inacessível, que escutamos e vemos e entendemos tudo o que tem para nos dizer.

Mas, verdade seja dita, tal entendimento não é possível, nem sequer desejável. Não só porque uma verdadeira obra de arte nunca termina de dizer aquilo que tem para dizer – assim definia Italo Calvino os clássicos –, visto que só o que é decorativo, funcional ou desprovido de mistério pode ser compreendido na íntegra, como a preparação do nosso espírito e da nossa sensibilidade não deve ir no sentido de os tornar mais robustos, agudos e penetrantes, mas, pelo contrário, de os tornar mais dóceis e maleáveis, afins do espírito e da sensibilidade das crianças, dos pobres de espírito, dos pecadores que se reconhecem pecadores.

Aí perceberemos que a arte não é compreensível, não é abarcável pela nossa limitada compreensão. Só nos resta criar em nós o espaço para a acolher, guardar em nós o terreno para que as sensações que nos avassalam prosperem e frutifiquem. A obra de arte não é um fruto à espera de ser colhido pela nossa ganância, é uma semente à espera do terreno onde prosperar, esse terreno que se chama humildade e despojamento.

Ao fim de algum tempo, a semente atravessa-nos e expande-se e percorre-nos e transborda porque não a podemos conter. Tanto nos preenche como, logo de seguida, nos esvazia. Dá-nos uma sensação de graça e de plenitude e, no segundo seguinte, de vazio e de abandono, pois ficamos sempre aquém da completude da arte, da sua integridade inviolável.

Perante uma obra como o São Francisco de Zurbarán, nós, humanos, milagres orgânicos, sentimo-nos falíveis, precários, incompletos, imperfeitos e degradáveis. E, no entanto, saímos maiores do que éramos à entrada, maiores na humildade, maiores na pobreza, maiores no pecado reconhecido porque nos foi permitido contemplar a perfeição, a santidade e a eternidade e não conseguimos afastar por completo a impressão de que, enquanto estivermos vivos, uma semente de perfeição, santidade e eternidade habitará em nós.

Paulo Duarte
secprov@ofm.org.pt
No Comments

Sorry, the comment form is closed at this time.