MÁRTIRES DE MARROCOS

MÁRTIRES DE MARROCOS

COIMBRA, 16 DE JANEIRO DE 2020

Homilia

As almas dos justos estão nas mãos de Deus. A sua saída deste mundo foi considerada uma desgraça, mas eles estão em paz! A sua esperança é cheia de imortalidade. Deus provou-os como ouro no crisol e achou-os dignos de Si” (Sabedoria 3).

“Deus nos pôs como homens condenados à morte, como espectáculo para o mundo. Loucos por causa de Cristo. Insultam-nos e somos abençoados, perseguem-nos e suportamos: considerados lixo para este mundo” (I Cor.,9).

“Envio-vos como ovelhas ente lobos. Hão-de entregar-vos aos tribunais, açoitar-vos, para dar testemunho diante deles e das nações” (Mt. 10).

 

Saúdo fraternalmente…

A história é mestra da vida, ousa dizer-se, mas não se pode bloquear, porque não está tudo dito, há sempre uma palavra nova, um novo caminho que se deve discernir para cumprir.

Não duvidamos. A vida é um seguir constante do caminho iniciado em Deus, percorrido pelas criaturas, até voltar à origem. A vida está sempre por fazer… Os santos são discípulos da Sabedoria Única, que não nasceu há 2 dias, mas é a origem de toda a vida. Vida que só é eterna; passa, de geração em geração, em aprendizagem permanente, de Mestre para discípulos.

Este é um momento saudável que estamos a viver em encontro comunitário. Momento de serenar, contemplar e rezar. Momento para mudança, conversão, renovação de vida, esquecermos o individualismo, que, por vezes, fecha a pessoa à volta do seu telemóvel.

Celebramos um grato acontecimento da História que tem oitocentos anos: os Santos Mártires de Marrocos. O gesto heróico do seu martírio tem como fonte a eterna Sabedoria; a que baixou à natureza humana para ensinar a sabedoria de viver. Nela eles foram iluminados e encorajados para o testemunho do martírio.

Não é possível celebrar a história com um simples clique. Exige aprender de novo a verdadeira sabedoria da vida; exige trabalho, empenhamento e novos propósitos, para não ser mais um, entre os muitos outros eventos que passam na nossa vida. Ocasião para revigorar a fé, que nos torne mais inquietos na exigência de sermos missão, numa sociedade que, discreta ou declaradamente, vai esquecendo e negando a sua identidade, a sua história, a sua fé, substituindo-a por ideologias de ponta e modas de momento.

Um rápido recordar da história destes Santos Mártires, nossos irmãos:

No Capítulo Geral do Pentecostes, da Ordem dos Frades Menores, em 1219, foi decidido que “os discípulos de Francisco de Assis partam em missão” entre os então chamados “infiéis”.

Um primeiro grupo foi de 5 frades. Homens jovens, sábios e santos, foram enviados em missão, a Marrocos, por S. Francisco, a levar a Verdade, e a Sabedoria de viver a esses povos.

Os missionários são: Frei Vital, (que adoeceu pelo caminho, em Aragão, e não pôde continuar) Frei Berardo, Frei Otão (sacerdotes), Frei Pedro (Diácono), Frei Acúrsio e Frei Adjuto (Leigos).

No caminho para o seu destino, em Espanha, foram duramente perseguidos e castigados.

Chegados a Portugal, na rota do seu destino, ficaram uns tempos em Coimbra, hospedados por seus confrades no pequeno ermitério de Santo Antão dos Olivais, onde estes já viviam desde 1217/18. Foi daqui que partiram para a missão.

O próprio Poverello já lá tinha ido, com os cruzados, em 1213, passando pela Lombardia, Piemonte e França. O seu velho sonho de chegar a Marrocos concretizou-se no encontro com o Sultão de Damieta, a quem anunciou com a alegria o Evangelho de Jesus, sem luta, sem imposição, sem espada, sem violência; só em paz e respeito. Declarou que era cristão. Voltou entusiasmado e, cheio de alegria e esperança, enviou este primeiro grupo dos seus seguidores para que continuem a evangelizar aqueles povos.

Ao enviá-los Francisco ter-lhes-á recomendado: “Meus Filhos o Senhor disse-me que vos mande aos sarracenos a lhes pregar a fé e a combater a lei de mafoma. Eu vou também a outras terras trabalhar na salvação dos infiéis. Sede prestos a cumprir a vontade do senhor. Entre vós conservai a paz, a concórdia e a caridade. Sede humildes na tribulação e imitai a Jesus Cristo na pobreza na castidade de na obediência. Ponde as vossas esperanças em Deus, ele vos sustentará e vos guiará. Aquele que vos envia, Ele mesmo velará por vós e vos inspirará o que houverdes de dizer”. Ajoelharam e S. Francisco concluiu: “Desça sobre vós a bênção de Deus Pai, como desceu sobre os Apóstolos. Ele vos acompanhe e fortifique nas tribulações. Não temais nada porque Deus está convosco. Ide em Nome do Senhor”.

Chegados a Marrocos, não demoraram a iniciar corajosamente o cumprimento do mandato do Pai Francisco, pregando a Verdade da Palavra de Deus. Mas, porque as palavras não convenciam, inspirados por Deus, ter-se-ão lembrado das palavras de S. Francisco, na Regra não Bulada, nº 10: “E todos os irmãos, onde quer que estiverem, lembrem-se que a si mesmo se deram e entregaram seus corpos a Nosso Senhor Jesus Cristo, e que, por seu amor se devem expor aos inimigos visíveis e invisíveis, porque diz o Senhor: Quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á para a vida eterna”.

Recorreram então a outra força maior: o testemunho máximo da fé pelo martírio cruel, desprezando os valores oferecidos: riquezas, prazeres, honrarias. E, “combatendo o bom combate, de firmes e fiéis soldados, selaram o testemunho com o sangue derramado” (Comum dos Mártires). Era o dia 16 de janeiro de 1220. Trocaram a sabedoria terrena e caduca pela eterna: Entregando os seus corpos para o martírio, deram o maior testemunho de fé em Deus. Imitaram Seu Filho Jesus, o Mártir dos Mártires crucificado, que levou o seu amor até ao extremo (Jo. 13,16-20).

Esta foi a primeira “missão ad gentes” na história da Igreja.

A notícia do seu martírio terá chegado a Francisco, que muito se alegrou e louvou a Deus, dizendo: “agora, sim, tenho 5 verdadeiros frades menores”.

Após o martírio, os seus restos de vida terrena, por altos desígnios de Deus, vieram para esta Igreja de Santa Cruz, e aqui se encontram em digna veneração.

A Igreja dos Santos Mártires, em Marraquexe, foi-lhes dedicada em 1929.

À volta destes heróis se contam verdadeiros milagres, à mistura, também, com muitas lendas que o povo de Deus criou. Um desses milagres poderá ter sido a vocação franciscana de Santo António de Lisboa, de cónego regrante de S. Agostinho, com o nome de Fernando de Bulhões, para Frei António. Aqui em Santa Cruz ele servia a Igreja. Visitava com frequência o pequeno ermitério dos frades, em Santo Antão dos Olivais, tornando-se grande admirador do estilo de vida evangélica desses frades, caracterizado sobretudo pela alegria, pela simplicidade, a pobreza e a humildade. Apreciava-os a andar, de porta em porta a pedir esmola. Também terão passado na Igreja de Santa Cruz, cruzando com ele e estendendo-lhe a saca das esmolas.

Quando esses seus amigos são martirizados e os seus restos de vida regressaram a Coimbra, ele mesmo os recebeu e venerou. Na sua alma nasceu uma santa ambição inquieta: a missão não pode parar, a Palavra de Deus é para salvação de todos. Deseja sinceramente ser um dos seus continuadores e, porque não, como eles, mártir da fé.

Pede e alcança a graça de vestir o mesmo burel desses heróis e professar a vida evangélica franciscana, com estes sentimentos: “Irmãos caríssimos, com vivo desejo vestirei o hábito da vossa Ordem se prometerdes enviar-me a terra de sarracenos, logo que eu entrar, na esperança de participar na coroa do martírio. E os frades, cheios de alegria com as palavras de homem tão insigne, fixaram para o dia seguinte a tomada de hábito”. Já frade menor, na hora possível, com a bênção de Deus e dos irmãos, seguiu para Marrocos.

Estes heróis estiveram verdadeiramente na génese da vocação franciscana de Santo António e foram semente de franciscanismo em Portugal, nestes já oito séculos da sua presença.

Pela graça de Deus, continua viva. Em 1481 o Papa canonizou estes mártires, que vêm tendo um culto especial na Ordem Franciscana e aqui nesta igreja. O Papa Bento XIV (1740-1785) estendeu este culto a todas as dioceses de Portugal, celebrado no dia 16 de janeiro.

Esta é a história de oito séculos. Não se repete tal como foi, mas repete-se, de verdade, no hoje dos nossos dias, nos locais mais inóspitos do mundo, onde a perseguição à Igreja Católica se mentem. Confissões religiosas diferentes sentem incómodo ao confrontarem-se com a verdade libertadora que Cristo trouxe à terra.

Estes são os novos mártires de hoje, que alimentam a vida da Igreja. São eles a rega permanente da árvore da Vida da Igreja, que se junta ao Sangue de Cristo. É a imensa plêiada dos mártires de todos os tempos, sendo Cristo o mártir em todos os mártires. “Seu sangue se junta ao Sangue de Cristo que nos redime; é seiva ardente escorrendo das mesmas veias rasgadas; morrendo nos vossos mártires, em todos viveis, Senhor” (Hino do Comum dos Mártires). Suas vidas ficam a celebrar eterna e feliz memória: para recordar, contar, e continuar hoje. Cabe-nos a sua continuidade.

Como sabemos, Frei António seguiu, mas a sua “missão” em Marrocos foi brevíssima, porque interrompida pela doença. Aqui se manifestaram, mais uma vez, os desígnios insondáveis de Deus, que reservava a Frei António outra missão: pregar a Palavra de Deus e encher a Itália, e sul de França. Outra forma de dar a vida pelo Evangelho da Verdade, à imitação de Cristo. O Senhor fecundou a sua pregação com muitos milagres.

Celebrando o heróico martírio destes frades, recordamos Jesus, o Mártir em todos os mártires. O seu grande triunfo foi a Cruz. Dela brotou uma nova humanidade, uma nova história. O cristianismo venceu o Império Romano somente depois que milhares de mártires derramaram o seu sangue como tributo da implantação do Evangelho na Roma pagã.

Na verdade, em todos os lugares onde o Evangelho entrou e floresceu, o sangue dos mártires foi derramado como semente lançada na terra nova. Semente de cristãos. O martírio é uma graça que Deus concede a alguns, dando-lhes um inconformismo com os valores do mundo e uma opção absoluta pela verdade do Reino. Na Carta aos Romanos, o seu autor recorda: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente”, experimentando “qual seja, boa, agradável, e perfeita, a vontade de Deus” (Romanos 12:2). Diz ainda que os crentes devem entregar seus corpos a Deus como sacrifício vivo, santo e agradável, como é o seu culto racional  (Romanos 12.1). Esta exortação, essencial ao viver cristão, estes irmãos mártires a puseram corajosamente em prática.

O homem necessita de modelos para se guiar na vida. Mas só existem dois: o modelo deste mundo, que um dia vai passar, e o modelo da vontade de Deus, que é boa, agradável, perfeita e eterna. Deus remodela nossas mentes a partir de dentro. Assim acontece com os mártires da fé. Neles, a fragilidade humana dá lugar ao poderoso amor de Deus.

Admirando estes modelos de crentes e franciscanos, a Província Portuguesa da Ordem Franciscana, após a sua restauração em 18 de outubro de 1891, adoptou-os como Patronos.

Cito Frei Henrique Pinto Rema, reconhecido historiador franciscano: “o seu corajoso testemunho de fé, regado com o sangue do martírio, está na base da vocação do primeiro franciscano português, Santo António de Lisboa, e constitui o gérmen do franciscanismo em território luso, que, pela graça de Deus, se mantém vivo até hoje.

A missão hoje continua. Em todas as vertentes, conscientes de que o chamamento para ela nos é feito pelo dom do baptismo. “Eu sou missão, tu és missão, a Igreja é missão: todos tudo e sempre Missão” (Mês Missionário 2019). Hoje, em particular junto dos mais pobres, os solitários, excluídos. São os “leprosos” de hoje que pedem um beijo aos seguidores daquele que corajosamente os abraçou, beijou e tratou.

Cito o nosso Ministro Geral Frei Michael Perry sobre estes Mártires:

“Quando existe uma clara visão franciscana da vida, ela ilumina todos e cada um dos pensamentos e acções realizadas pelos Franciscanos, em todo o mundo. Quando Francisco de Assis se encontrou com os socialmente excluídos, marginalizados, pobres e leprosos, reconheceu que Deus estava presente nestes irmãos e irmãs. Ao contrário, quando se retirava para a solidão para orar, reflectir e alimentar a sua relação com Deus, sentia com ele a presença de toda a humanidade e da criação, especial os que sofrem.

“Frades menores, celebrando os nossos antepassados mártires, queremos assumir o compromisso de abraçar o ardente desejo de Francisco, de partilhar a sua experiencia do amor misericordioso de Deus com todos. Uma experiência que o levou a abraçar todas as pessoas como irmãs e irmãos, filhos e membros da única família de Deus.

Chamados a servir como pontes entre os confrades e as pessoas que sofrem: excluídos, marginalizados, repondo a dignidade de todos, em especial os que sofrem, das mais diversas formas. Isto nos leva a viver plenamente a nossa vocação de filhos amados, membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja, irmãos de todos os povos e de toda a criação, renovados e guiados pelo exemplo de Cristo e de Francisco. Chamado a seguir o caminho da santidade, na justiça, na paz e bondade com todos os seres da criação”. Termino com a oração que nos acompanhou nesta semana da vocação franciscana, que hoje encerra:

Senhor, nós te louvamos pelo dom da nossa vocação;

nós te louvamos pelo dom da nossa Província;

nós te louvamos pelo dom de cada irmão.

Concede-nos, Pai bondoso,

por intercessão dos Protomártires,

que há 8 séculos deram a vida pelo Evangelho,

a fidelidade no seguimento de Teu filho Jesus,

para que, iluminados pelo fogo do Espírito Santo,

demos testemunho do teu amor,

aos homens e mulheres do nosso tempo.

Assim seja. Ámen!”

 

A intercessão dos Santos Mártires de Marrocos nos ilumina. Paz e Bem

Paulo Duarte
secprov@ofm.org.pt
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