Recordando o Pe. Costa Freitas

Recordando o Pe. Costa Freitas

Um texto da Professora Doutora Maria Lonor Xaviar, publicado no jornal

Fazedores de Letras da Faculdade de Letras

Há 10 anos, deixou-nos alguém com quem continuamos a conviver através da sua escrita, embora, muitas vezes sem nos apercebermos disso, ao consultarmos um usual do estudo da filosofia em língua portuguesa: Logos – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, publicada em 5 volumes pela Editorial Verbo, em Lisboa e S. Paulo, de 1989 a 1992. Alguém que contribuiu abundantemente para a Enciclopédia Logos foi, na verdade, Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010), Padre Franciscano, Professor Catedrático de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa desde 1968, tendo ficado ligado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por ter aqui iniciado e coordenado o ensino da disciplina de Filosofia da Religião, entre 1987 e 1998.  Muitas das entradas que  assinou na Logos articulam-se com esta sua área preferencial de ensino: “Deus” (1, 1364-1372), “Luz” (3, 552-558), “Teologia Filosófica” (5, 104-107), “Maniqueísmo” (3, 608-613), “Monoteísmo” (3, 944-946), Desejo Natural de Deus (1, 1348-1354), “Teodiceia” (5, 99), “Providência” (4, 474-477), “Mal” (3, 596-604), “Optimismo” (3, 1247-1250), “Religião” (4, 675-686), “Filosofia da Religião” (4, 686-692), “Consciência Religiosa” (1, 1140-1141), “Esperança” (2, 227-233), “Interioridade” (2, 1469-1473), “Vocação” (5, 559-561), “Mistério” (3, 889-893), “Mística” (3, 893-899), “Sagrado” (4, 859-867), “Profano” (4, 448-449), “Tradicionalismo” (5, 254-258), “Modernismo” (3, 919-924), “Fideísmo” (2, 551-553), “Agnosticismo” (1, 85-88), “Ateísmo” (1, 490-500), “Liberdade de Consciência” (1, 1134-1135), entre muitas outras. Para além da competência da informação sobre os temas tratados, Padre Manuel da Costa Freitas mostra nos seus textos uma escrita primorosa e vocacionada, sobretudo, para o ensino e a divulgação do saber, uma escrita ao serviço dos outros, não uma escrita virada para a afirmação de uma originalidade autoral. Por isso, nós tantas vezes o lemos sem consciência de quem estamos a ler, nem preocupação de saber quem é o autor.

Todavia, em matérias de ordem espiritual, não é possível uma total e abstracta objectividade, pois o espírito é sujeito e nunca se verte integralmente em dados objectivos. Por isso, nos artigos de Padre Manuel da Costa Freitas, também entrevemos preciosas indicações sobre o seu próprio pensamento filosófico-teológico. Este é um pensamento que podemos entender sob o signo do equilíbrio, à maneira aristotélica e tomista, qual virtude do equilíbrio entre dois excessos: nem modernista nem tradicionalista, mas um equilíbrio entre modernidade e tradição; nem fideísta nem racionalista, mas um equilíbrio entre fé e razão; nem racionalismo nem irracionalismo, mas um equilíbrio entre a vida e a razão.

Considere-se esta oposição entre racionalismo e irracionalismo. Do lado do irracionalismo, estão as filosofias que reconhecem haver vida aquém ou além da razão, que Costa Freitas agrupa e sistematiza na sua entrada sobre “Irracionalismo”, na Logos (2, 1498-1505). Denunciando o carácter redutor de ambos os -ismos, o irracionalismo e o racionalismo, Costa Freitas afirma a unidade real e inseparável entre razão e vida: «A razão penetra e insinua-se na Vida como esta se abre e eleva até à razão.». A distinção é conceptual, é de razão, mas justifica-se para afirmar o primado da vida, qual reconhecimento augustiniano do irrecusável da vida, como sugere o uso pontual de maiúscula em «Vida». É no interior da vida que a razão emerge e se processa como princípio de esclarecimento da realidade. Esta afirmação do primado da vida sobre a razão é uma concessão ao irracionalismo, mas é uma concessão espiritualista, uma vez que razão e vida «fazem parte de uma mesma realidade espiritual e concreta», vida e razão são partes inseparáveis da realidade do espírito. O pensamento de Costa Freitas é, assim, um espiritualismo que concede o primado da vida ao irracionalismo.

Solidária com esta orientação, é a sua posição de equilíbrio entre o fideísmo e o racionalismo. Costa Freitas recusa o racionalismo como uma forma de reducionismo que não dá conta da experiência integral do homem, no seu artigo sobre o Cardeal John Henry Newman (Logos, 3, 1136-1145), referência tutelar do seu pensamento, que o conduz a uma feliz formulação do essencial da atitude religiosa: a convicção «do fundo misterioso e impenetrável da realidade». Esta convicção é a crença comum a todo o homem religioso, tal como a adesão ao «princípio da universal inteligibilidade do ser» é a crença mais comum dos filósofos. Será possível harmonizar as duas crenças? Elas harmonizam-se em Costa Freitas, e de tal maneira que não nos é possível compreender o seu pensamento sem a harmonia entre a convicção religiosa e a atitude filosófica, isto é, entre a fé e a razão. Mas, nessa harmonia, o primado cabe à fé, à convicção religiosa: esta é que é a atitude fundamental perante a realidade. Quer isso dizer que a razão é secundária e só se acrescenta à fé para a escrutinar? Não: «derivada e artificial» é a atitude racionalista, não a razão. Esta está presente desde cedo na convicção religiosa, tornando-a desde logo «razoável», isto é, amigável à razão, mesmo antes de ser racionalmente escrutinada. Esta ideia de «razoável» é uma noção-chave do ponto de equilíbrio do pensamento de Costa Freitas entre racionalismo e fideísmo. Por isso mesmo, a recuperação dos laços da teologia com a filosofia e a preocupação com os problemas do seu tempo são duas linhas-mestras de orientação do seu pensamento filosófico-teológico.

Padre Costa Freitas viveu intensamente os problemas do seu tempo, mormente o fenómeno cultural do ateísmo moderno e contemporâneo, que o interpelou de facto e de forma veemente como um problema filosófico-teológico. Dá disso testemunho em, pelo menos, dois dos seus ensaios teóricos: “Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo” (1971) e “Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia” (2000), textos produzidos para foros de debate teológico, que podem ser encontrados na colectânea de artigos seus: O Ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, Vol.I, Lisboa, Editorial Verbo, 2004, pp. 645-655, 500-511. Na sua compreensão, o problema do ateísmo tem uma dupla origem: um fundamento teológico e uma motivação existencial.

Na verdade, Costa Freitas compreende o problema do ateísmo a partir da sua condição de possibilidade teológica: a teologia da criação, porquanto a criação é a instauração da autonomia plena do homem, para quem, separado da origem, Deus se torna «inevidente». A inevidência de Deus, criada pela própria criação, é o efeito de distanciamento do Criador relativamente à sua obra, um recuo de Deus que favorece a autonomia relativa do homem. Assim entendida, a inevidência de Deus é um dom de autonomia ao homem, que é também a autonomia da ciência na observação e estudo da ordem própria da natureza. Costa Freitas defende inequivocamente a independência da ciência face à religião e concede, por isso, a prescindibilidade de Deus em ciência. Mas inevidência de Deus para a ciência não constitui fundamento imediato do ateísmo, antes significa a irredutibilidade de Deus a qualquer objecto científico. A inevidência de Deus só torna possível o argumento ateísta da inutilidade de Deus em ciência, mediante uma atitude racionalista, que Costa Freitas rejeita como um ponto de vista sobranceiro da ciência e reducionista da esfera religiosa.

No entanto, o ateísmo também tem causas e razões por parte do homem: trata-se do ateísmo postulado pela existência humana. Este postulado existencial do ateísmo tem duas frentes: por um lado, é uma afirmação da autonomia do homem, levada ao extremo da negação de Deus; por outro lado, o ateísmo aparece como uma consequência do escândalo do mal. Um escândalo, que não é novo, mas que adquiriu tais conteúdos e acuidade que o tornam incompatível com uma providência tutelar de Deus. Perante o sofrimento dos inocentes e das crianças, a inevidência de Deus transforma-se num silêncio insuportável: o silêncio da Sua providência. O ateísmo existencial do homem é, em grande medida, a negação de um Deus providente. Padre Costa Freitas reconhece ainda que essa negação é coadjuvada por uma fé deformada «em que Deus aparece identificado com um pronto-socorro, com um enfermeiro-mor e a religião reduzida a uma forma de superstição e de magia» (“Fé e Ateísmo no Mundo Contemporâneo”, in op.cit., p.650). É preciso eliminar estes traços de antropomorfismo grosseiro e caricatural da concepção do Deus da fé. Daí o entendimento do papel positivo do ateísmo, como um apelo à vigilância racional e auto-crítica do Deus da fé.

Julgamos mesmo que a interpelação do problema do ateísmo, bem como a exigência de replicar com soluções racionalmente fundamentadas foram factores decisivos na orientação e definição do seu pensamento, que podemos esquematizar em 4 pontos cardeais: 1) um providencialismo de exemplo, o de Jesus Cristo, que na sua vida e morte se coloca do lado das vítimas, constituindo o ponto culminante do exercício da providência divina sobre a humanidade; 2) uma teologia personalista da criação, que concebe um Deus livre e criador da criação, incluindo o homem concriador, e que não terá sido alheia à influência da filosofia de Leonardo Coimbra, que fora objecto dos seus estudos de doutoramento; 3) uma antropologia de vocação, em que o homem é chamado a «realizar na sua existência, o apelo da sua essência.» (“Silêncio de Deus: Desafios à Teodiceia”, in op.cit., p.506), que é uma aventura de autodeterminação; 4) e uma metateologia inclusiva, que não só equaciona a origem da hipótese de Deus no pensamento humano e na consciência moral, como integra o valor da teologia filosófica, das provas racionais da existência de Deus e da teologia negativa, e justifica a tendência personalista da sua própria teologia em convergência com a fé cristã. Quanto mais não fosse, bastariam estas 4 linhas de orientação do seu pensar teológico para valer a pena conhecer e não esquecer o Professor Costa Freitas também como ensador.

Paulo Duarte
secprov@ofm.org.pt
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